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A 3ª face

Qua | 03.10.18

Desafio da escrita - dia 3 : dentes

Hoje não vou inventar histórias.

A palavra do dia é-me muito cara (literalmente) e leva-me a um post de Agosto do ano passado e que não resisto em republicar:

 

 

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Nunca achei piada ao ritual da Fada dos Dentes. Da notinha debaixo da almofada ou de atirar o dente para o telhado e gritar: “Dentinho, dentão, toma lá um podre, dá cá um são” (as pessoas da minha geração sabem do que estou a falar).

Fiz mal.

Razão tinha a minha mãe em venerar a dita Fada, ao ponto de pegar no primeiro dente de leite que me caiu e ir entregar ao ourives cá da terra. Dias depois, ofereceu-me, toda orgulhosa, uma medalha. Ou melhor, o meu dente atarrachado num aro de ouro e que eu usei ao pescoço durante alguns anos (as pessoas da minha geração sabem do que estou a falar).

Sim, era nojento (mas era moda) e acho que condicionou a minha má relação com a Fada.

Com os meus filhos, apenas me limitei a guardar os dentinhos que caíam, sem homenagens ou manifestações de devoção (hoje em dia, já nem sei quais são de quem).

Mas a minha filha, aos 11 anos, tropeçou nos cordões das botas, caiu e partiu um dente da frente. Mais tarde, verificou-se que para além de um dente torto, a menina tinha má mastigação e foi um passo até começar a usar aparelho extra-oral, depois o aparelho de brackets, a rotina das consultas mensais, a contenção ortodôntica.

O meu filho mais novo mudou a dentição de forma estranha e o RX veio revelar que tem “agenesia dentária” , razão pela qual não tem 2 dentes definitivos à frente. Há dois anos que usa aparelho extra-oral e preparamo-nos para passar às brackets, muito em breve. Há-de-lhe ser criado um espaço para, mais tarde, colocar um implante (que vai fingir que é o dente que nunca lhe irá nascer).

Na semana passada, tivemos consulta no dentista. Dizem-me agora que a minha filha não tem espaço para os dentes do siso, que vão estragar o trabalho de ortodontia, que vão provocar cáries, que é melhor extrair…

Sim, continuo a acreditar que a Fada dos Dentes não existe. Ela é uma bruxa mercenária a soldo, que passa recibos verdes ao nosso dentista e que continuará a furar-me a conta bancária para o resto da vida.

 

Texto inserido no Desafio da escrita

Palavra do dia 3: dentes

Qua | 03.10.18

A morte pode esperar

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 - C'um raio. Já faz frio!

Porque não posso ficar mais um bocadinho na cama?

Passei a maior parte da vida a desejar a reforma para esquecer o relógio e os horários e agora isto!

Raios parta o meu feitio de não querer ficar parada!

Quem me manda a mim dizer à Belinha para passar por cá e irmos juntas para a piscina? 

 

Manuela levanta-se contrariada.

A cama é solitária, há anos que perdeu o marido e vive sozinha.

Do que mais falta sentiu foi dos pés aquecidos no Inverno. Mas o edredão que a filha lhe oferecera há dois Natais atrás faz mais ou menos o mesmo. Pelo menos, não resmunga pelo atraso do jantar, por querer ir para a tasca passar o serão com os amigos.

 

As cruzes, caramba. Ai que dor, quando se levanta!

Mas já esteve bem pior. A hidroginástica anda a fazer-lhe bem.

 

Está a terminar a torrada - que a placa gosta de mastigar devagarinho - quando a comadre Belinha se assoma ao postigo da porta.

- Ainda não tás despachada, moça? Lá vamos perder o melhor lugar no balneário, outra vez! 

 

Mas Manuela nem lhe responde. Está a tentar planear o que tem para fazer.

Hoje é dia do neto cá vir almoçar. Tem que ir comprar uns bifinhos, que é o que o menimo mais gosta.

E às duas e meia, tem aula de português na Universidade Sénior. E depois há reunião para fazer as rifas do cabaz de Natal.

É difícil lembrar-se de tudo o que tem a fazer.

Já calhou esquecer-se do ensaio da peça de teatro.

A cabeça já não dá para tanto.

Raio de feitio de não querer ficar parada!

 

A comadre Belinha corta-lhe o raciocínio:

- Olha lá, já sabes quem morreu?

 

Não, não sabe. Mas conhece a comadre desde criança e consegue adivinhar, pelo tom, que foi mais uma das suas amigas.

O cair da folha não perdoa, isso já ela comprovou.

Antigamente, custava-lhe ir aos funerais e despedir-se das pessoas queridas.

Sempre foi jovial e o grupo de amigos era grande. 

Agora nem tanto. Restam cada vez menos. 

Porém, por força do hábito ou porque já se habituou a conviver com a morte, passou a gostar de funerais. Vai a todos.

É um convívio como  qualquer outro. Com a diferença de que um dos amigos já não colabora na conversa. Apenas escuta, deitado, no centro da igreja.

É ali que sabe das novidades, revê a mocidade que já não costuma sair de casa  e mata saudades dos filhos dos amigos que ajudou a criar e só vê, agora, nestas ocasiões.

Lá terá de ir a mais um funeral. Ainda bem que tem a roupa passada.

Mas agora, o que importa é não se esquecer da toalha e dos chinelos de banho.

E comprar os bifinhos para o menino.

 

Saem de casa.

C'um raio, já faz frio.

Está um lindo dia de sol frio, pensa.

 

E lá vão as duas, cada qual a queixar-se da humidade e das suas dores nos ossos.

A morte, essa pode esperar...

 

As actividades físicas, de estimulação cognitiva e sensorial, o  convívio e o envolvimento familiar são indispensáveis para proporcionar a qualidade de vida dos idosos e retardar as doenças degenerativas.

Proporcionar as condições para o bem-estar dos idosos é acrescentar-lhes vida aos anos, com benefícios para os próprios e para a sociedade.

 

 

O texto faz parte de um conjunto de reflexões sobre o Envelhecimento.

Posts já publicados:

Dia Internacional do Idoso

E tu, o que queres ser quando fores velho?

 - Mesmo velhinha...uma mãe sabe