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A 3ª face

Qui | 04.10.18

Desafio da escrita - dia 4: livro

 

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Chamavam-lhe “o Dótor”, alcunha que ganhara nos tempos de escola.

Os livros eram o seu fascínio e andava sempre com um debaixo do braço.

Sempre. Desde que se levantava até que se deitava.

 

Pena que nunca conseguira aprender a ler.

Os 8 anos em que andou na Primária, e apesar do esforço das professoras, foram inúteis nessa área.

Os médicos concluíram que tinha um atraso mental.

Anos mais tarde, perante a insistência da mãe, que jurava que o filho era bastante inteligente e só não conseguia ler, deram-lhe um diagnóstico elegante e que a convenceu: Síndrome de Asperger.

Mas, mesmo sem ler, amava livros.

Enquanto criança, insistia para que a mãe lhe lesse diariamente os seus predilectos.

Decorou as histórias, página a página e quem não o conhecia, nem desconfiava que era analfabeto.

Mais tarde, percebeu que, quando a professora pedia à turma o resumo de um livro, cada qual narrava uma história diferente. E concluiu que o importante não é o que está escrito mas o que guardamos dentro de nós.

 

E aprendeu a ler.

A única diferença é que, ao invés dos leitores comuns, as histórias que lia soltavam-se da sua cabeça e cravavam-se nas letras dos livros.

E todas começavam assim:

“ Era uma vez um homem que sabia ler…”

 

Texto inserido no Desafio da escrita

Palavra do dia 4: livro

Qui | 04.10.18

79 anos e um pastel de nata

 

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- Amanhã a tia faz anos e vou aí visitá-la. O que quer de prenda de anos?

 

Prenda de anos?

Havia tanto para pedir!

O amor da filha e do neto, com quem vivia há 2 anos.

Os medicamentos  para a tensão, que não tomava há mais de uma semana.

Um quarto só para si, para chorar à vontade.

Respeito e compreensão.

Paz nos últimos dias de vida.

Mas, perante o telefonema inesperado da sobrinha e os olhos da filha cravados nos seus, abafou o único pedido que lhe podia fazer:

(- Um pastel de nata! O que mais desejava era um pastel de nata.)

Não comia um desde o dia em que a filha, entretanto desempregada, a foi buscar ao lar.

Disse que tinha mais tempo, agora que estava sem trabalho.

Que conseguiria tratar dela melhor do que ninguém, apesar do estadio de Parkinson já avançado.

E ela ficou feliz, tão feliz como nos tempos em que a filha, ainda pequenina, a cobria de beijos.

 

O dia a dia mostrou-se diferente.

A filha e o genro estavam desempregados e já se sabe que pessoas nesta situação andam com os nervos em franja.

Desorientam-se, dizem coisas que não sentem, pois claro.

Por isso, desculpava-os cada vez que lhe gritavam e a mandavam parar de tremer à mesa.

Compreendia que a falta de dinheiro justificava que lhe ficassem com a reforma toda. Afinal, havia contas a pagar.

E foi ela que sugeriu deixar de dormir no quarto do neto, que todas as noites, já deitado, lhe chamava velha mal-cheirosa e lhe desejava que no dia seguinte acordasse morta.

Percebia que o menino ficava incomodado com o ranger de dentes constantes, que se agravou quando deixaram de lhe comprar mais de metade dos medicamentos.

Foi dormir para um divã na marquise, apesar do vidro não proteger do frio no Inverno e de parecer uma estufa no pino do Verão.

Só ainda não tinha conseguido desculpar o genro quando ela tomou coragem de lhe pedir que comprasse os medicamentos para a tensão, senão acabaria outra vez no hospital com nova crise de hipertensão.

As palavras do genro foram imediatas:

- Ó velha d'um cabrão, não vês que no hospital te dão os medicamentos à borla? Achas que vou gastar dinheiro na farmácia se tos oferecem no hospital, quando lá chegas com o badagaio?

O que mais lhe custou não foi a resposta. Foi saber que o único dinheiro da casa era o seu. E que o genro tresandava a vinho. Uma caixa de comprimidos custava 3 €. Muito mais teria gasto na taberna.

 

- A tia não quer nada, querida. E não venhas cá. A tua prima já combinou que amanhã me leva a passear e vamos todos lanchar fora. Mas obrigada. Beijinhos.

Desligou antes que os soluços a denunciassem.

A filha já a tinha avisado que não queria visitas nem que falasse com ninguém se ela ou o marido não estivessem presentes.

E foi a desculpa que arranjou.

 

Afinal, sabia que já não prestava para nada nesta vida. 

Tantas noites pensou abrir a janela daquela marquise do 4º andar que mais parecia a sua gaiola e voar para a liberdade eterna.

Mas não podia.

Não por ela.

Pela filha e pelo neto, que deixariam de contar com a sua reforma para sobreviver.

 

Mas um pastel de nata! O que ela daria por um pastel de nata como prenda pelos seus 79 anos...

 

Em casa e mesmo em lares, as pessoas idosas podem estar expostas a abusos.

A maior parte das vezes, os maus-tratos são silenciados, por várias razões, tais como:

  • O idoso não reconhece que está a ser negligenciado;
  • Sofre de perda de memória ou demências;
  • Não reconhece os seus direitos;
  • Vive socialmente isolado;
  • Sente-se culpado pela própria vitimação;
  • Receia que, ao denunciar os maus tratos, possa vir a sofrer represálias por parte do agressor;
  • Sofre de chantagem emocional.

Os maus tratos não se esgotam na violência física. Podem ser de natureza psicológica, sexual, financeira ou negligencia e abandono.

Tal como qualquer outro tipo de violência doméstica, este é um crime público e pode ser denunciado, mesmo de forma anónima.

 

Aqui ficam alguns Contactos úteis de Apoio à vitima idosa:

Associação Portuguesa de Apoio à Vitima: 707 200 077

Linha Nacional de Emergência Social: 144

Linha do Cidadão Idoso da Provedoria de Justiça: 800 203 531

Guarda Nacional Republicana: Contacte o Posto da área da sua residência.

 

O texto faz parte de um conjunto de reflexões sobre o Envelhecimento.

Posts já publicados:

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E tu, o que queres ser quando fores velho?

 - Mesmo velhinha...uma mãe sabe

A morte pode esperar