O que eu quero relatar é que hoje estive do outro lado.
Há um mês que esperava por uma consulta médica.
Fiz 60 km para ir ao hospital ouvir, da própria médica, que não podia efectivar a consulta.
Cá fora estava um paciente furioso. Demorou uma ano em exames e marcações até lhe ser confirmado o diagnóstico de cancro na prostáta (como ele referiu).
Hoje, finalmente, iria à consulta para ser decidido o tratamento.
E ele, mais o seu cancro da prostáta, voltaram para casa. Iguais a ontem (talvez o cancro tenha ganho terreno e esteja mais disseminado, saber lá).
E vim a pensar na velha questão: até onde os direitos de uns se podem sobrepor aos direitos dos outros?
Nisto das greves, todos têm razão.
Uns querem melhores regalias. Outros querem ser atendidos nos serviços públicos, que para isso é que pagam impostos.
Pessoalmente, sinto cada vez mais descrença nas greves.
Sinto-as vazias.
Parece-me que existem para cumprimento de calendário, como as acções de formação financiadas que têm de ser concretizadas até ao final do ano civil.
Ou como a Black Friday.
Todos os anos, já sabemos que vão acontecer na altura ideal, quando já cintila o 13º mês.
A greve geral da função pública também tem uma data ideal. A uma sexta-feira (aproveita-se para fazer ponte), imediatamente após recebermos o vencimento (dinheiro fresco faz esquecer o corte do mês seguinte) e com efeitos diluídos no recibo que engloba o 13º (nem vamos dar pelo desconto, vamos lá ficar em casa).
Eu ainda me lembro do meu pai fazer greve, logo após ao 25 de Abril, por direitos fundamentais. E faziam o horário de trabalho junto à porta da empresa. Nem um minuto de atraso.
Hoje em dia, sinto a greve como uma forma de reivindicação “que tem de ser”.
Com data marcada.
Bora lá fazer greve no dia em que dá mais jeitinho.
E como não acredito em lutas por marcação, vim trabalhar.
Mas depois do curso acabado e de dois livros publicados às suas expensas (ou melhor, da família) e sem grandes êxitos, rendeu-se à crua realidade de que teria que encontrar outra opção de vida.
E tornou-se professora de Português e Literatura.
Era boa profissional. A paixão com que ensinava sobre os livros dos outros era quase igual à dos seus sonhos.
Agora estava ali. Ela, Inês Real.
No palco de um anfiteatro, a receber o prémio de melhor livro do ano.
Nem sabia como. Foi tudo tão rápido.
E podia agradecê-lo à avó, Maria Inês.
A sua heroína de sempre. A mulher de força invencível, que vivia cada dia como se não acreditasse no amanhã.
Porém, quando um cancro fulminante lhe ditou que o amanhã poderia mesmo não chegar, foi Inês - a neta - que fez questão de cuidar dela no final da aventura.
Nesses dias, entre lágrimas e morfina, conheceu a avó verdadeira. E o seu passado.
Conheceu a Maria Inês do espírito aventureiro, que a levava a desafiar o mundo.
E esta confidenciou-lhe que o amor da sua vida não tinha sido o marido. Tinha-se apaixonado muito antes por outro homem, de nome Miguel, motorista de um Ministro.
Sendo de uma das famílias da elite lisboeta, o amor de Maria Inês e de Miguel foi um escândalo na família. Proibido.
Encontravam-se às escondidas na casa do Ministro, que rapidamente descobriu o caso amoroso.
E que mais rapidamente ainda também se apaixonou por ela.
Com medo da pressão da família, Miguel convenceu-a a fugir par o Brasil e aos poucos, Maria Inês foi desviando de casa o que queria levar na viagem sem volta.
Nunca conseguiria carregar tudo no momento da partida e foi levando alguma roupa, depois jóias, a moldura com o retrato da família, o diário em que escrevia sobre a sua paixão.
Tinha medo. Da decisão e do futuro. Fora criada como uma princesa e, no fundo, tinha dúvidas se o amor a faria esquecer o luxo a que estava habituada.
Mas amava Miguel tanto quanto aquele pequeno ser que lhe começava a arredondar a cintura. E de quem ele nem desconfiava.
Por coincidência ou espionagem, na noite em que Maria Inês deveria sair de casa para se encontrar com Miguel no cais, de onde partiria o navio para o Brasil, o Ministro entrou-lhe casa a dentro a pedir a sua mão em casamento.
E Maria Inês ficou.
Para sempre.
E do seu grande amor restou a mãe de Inês Real, sem desconfiar que nunca foi filha de um Ministro.
E como testemunha um diário desaparecido, único tesouro que a avó lamentou no último suspiro. Disse que escrevia quase tão bem como a neta…
Foi esta história, com todos os pormenores da vida ou da imaginação da avó - saber lá - que se transformou no romance do ano “A mulher que não chegou ao cais”.
E foi entre autógrafos e fotografias, depois da cerimónia, que um velhinho simpático e com sotaque brasileiro a beijou, elogiou e lhe ofereceu um presente pelo carinho com que narrou a avó, uma idosa como ele.
Quando Inês Margarida retirou a fita e o bonito papel e recuperou, já o velhinho desaparecera.