Ouviu esta lamúria lá muito ao longe. Reconheceu a voz familiar da avó e aos poucos, sentiu-se a recuperar os sentidos. Ou melhor, apenas a audição porque mantinha um torpor que a impedia de ver, cheirar e sentir o corpo.
- Não sei explicar o que aconteceu. Eles estavam no recreio e um aluno veio chamar-me aos gritos, que a menina havia caído e estava mal. – Discerniu a voz da professora, embora nunca lhe tivesse sentido a voz tão trémula.
- Corri para o local e encontrei-a desmaiada, debaixo da árvore, com a perna dobrada. Nem lhe mexi. Liguei para o 112 e afastei os amigos que a tentavam acordar.
Os avós mantiveram-se em silêncio.
Já tinham percebido!
Mais uma vez, a neta saltara de uma árvore. Só que agora, as consequências pareciam ir além de uma esfoladela e meia dúzia de nódoas negras.
Abriu os olhos para sorrir mas as dores arrebataram-lhe a perna direita de rompante.
Os olhos de censura e preocupação dos avós impeliram-na a cerrá-los de novo.
Não queria cruzar-se com o sofrimento deles. Sobretudo porque eles não mereciam.
Mas, como sempre, aquele desejo era incontrolável. Possuía-a e tirava-lhe a razão.
Passos abafados e uma voz grossa captaram-lhe a atenção.
- Já tenho o resultado do RX e não há fractura. Apenas uma luxação que requer muito repouso. Já trago a prescrição de alguns medicamentos para aliviar as dores e podem ir para casa.
Aliviar as dores…as dores que sentia desde que se lembra de existir não passam, Sr. Dr.! Nem com todos os medicamentos do mundo!
- Obrigada por ter acompanhado a menina ao hospital, Srª Professora. Realmente, não sei o que lhe havemos mais de fazer – ouviu a avó dizer.
- Tratem-na com muito amor. Muito amor e um estalo de quando em vez, para não repetir disparates destes!
De facto, o amor valeu-lhe durante alguns anos, enquanto esteve rodeada pelos avós.
Quanto aos estalos…recebeu muitos ao longo da vida mas de nada valeram. Sempre se sentiu imune à dor física. Já a da alma…
Conversa na caixa do supermercado, onde por acaso toda a gente se conhece:
Cliente 1:
- Então, isto nunca mais tem sossego, não? Este ano o pessoal de férias nunca mais acaba.
Operadora:
- Nem me fales. Estive a reforçar o Algarve mas as pessoas este ano não diminuem.
Cliente 1:
- Ora, este ano não tiveram de comprar livros e têm mais dinheiro para gastar. Têm é de o gastar que não podem ficar com ele!
Eu:
- Pois é, mais o dinheiro que passaram a poupar nos passes!
E isto vem de encontro ao que eu tenho vindo a pensar, com muita apreensão:
O que aprendemos com a crise?
O que alterámos no comportamento colectivo para evitar uma nova catástrofe económica e social?
Pouca coisa, concluo eu.
Há uns tempos, senti-me chocada ao ouvir na rádio um anúncio de um banco - banco mesmo, não entidade de crédito - a oferecer empréstimos para férias… isto não deveria ser proibido tal como as bebidas alcoólicas? Não foi o crédito fácil para aquisição de bens supérfluos responsável pela insolvência de tantas famílias?
E a poupança?
Está a ser prioridade para nos proteger em dificuldades futuras?
Tenho muitas dúvidas. A observação do comportamento humano tem demonstrado que somos dotados de mecanismos de superação para ultrapassar as catástrofes colectivas.
Há estudos sobre isso. Em povoações fixadas próximo de vulcões, por exemplo. Após as catástrofes, regressam ao mesmo local, acreditando que não voltará a acontecer.
Se calhar somos mesmo assim, o que pode explicar a repetição cíclica de crises económicas ao longo da história.
Somos tão bons a evoluir tecnologicamente mas tão maus a ajustar o nosso modo de vida!