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A 3ª face

Sex | 29.11.19

Desafio dos Pássaros #12

 

Tema da semana: Aqueles pássaros não se calam

 

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A loja dos meus padrinhos fica na praça central da aldeia.

As carreirinhas de casas pintadas de branco juntam-se neste largo de calçada portuguesa, sombreada por várias árvores centenárias.

Gosto de dar nome às coisas.

Mas a minha ignorância impede-me de dizer que árvores são.

 

Debaixo das árvores, há bancos de madeira e antes das eleições, vieram colocar uma mesa um pedido antigo dos velhotes que se juntam ao fim da tarde para apanhar a primeira brisa do crepúsculo e dar dois dedos de conversa.

Não sei como conseguem porque, a essa hora, os pardais que habitam nessas árvores regressam aos ninhos e, tal como os velhotes, também põem a conversa em dia. Deve ser por isso que o barulho é ensurdecedor.

 

Mas o que mais me impressiona na praça são os canteiros de flores irrepreensíveis.

Nunca vi jardim tão bem tratado!

Conheço o jardineiro.

É neto de um desses velhotes.

Costuma vir à loja.

Não que precise de qualquer coisa.

Vem por mim. Dá para perceber.

Mas eu, criada em Lisboa, não tenho qualquer interesse num jardineiro de aldeia, apesar de ser capaz de inspirar qualquer estátua grega.

 

Ontem, vinha eu da biblioteca com um livro de Florbela Espanca, voltou a meter conversa comigo.

Perguntou se gostava de Florbela.

E eu, que só escolhi o livro porque percebi que nasceu alentejana, desci da minha superioridade e confessei que não conhecia.

Os olhos dele brilharam ao falar e recitar alguns poemas.

E depois falou de Fernando Pessoa e de António Nobre. E de outros tantos poetas que eu nem sei quem são.

Acabámos sentados num dos bancos da praça.

Falou-me da sua paixão pela literatura e confessou que também escrevia. Mas a timidez impedia-o de mostrar os seus poemas.

Perguntei-lhe porque não tinha ido estudar.

Explicou-me que os pais eram emigrantes e foi criado com os avós. A avó morreu quando ele estava a terminar o secundário e não teve coragem para abandonar o avô.

Quando ele morrer -  que Deus faça com que demore muitos anos – pensará nisso.

 E levantou-se que tinha de ir, já era quase por-do-sol.

 

Então eu percebi:

 Que há poetas que escrevem com flores em vez de letras;

Que a inteligência pode esconder-se num acto de amor;

Que julgar pessoas sem as conhecer deveria ser pecado mortal.

 

Ao observar, vi-o agora por inteiro: ainda mais bonito por dentro do que por fora.

Quis chamá-lo para continuarmos a conversa.

Gritei mas não me ouviu.

Aqueles pássaros não se calam!