Sara esperava que o elevador chegasse ao 10º piso do hotel para a embalar até ao chão.
Desde as nove da manhã que estava na sessão fotográfica - raio dos produtores que nunca se satisfazem com os milhares de fotos que lhe roubam por minuto -, comera uma mísera salada e uma lata de bebida energética, cujo efeito já estava a passar.
Desde meados de Janeiro, quando regressou ao trabalho, o ritmo era este.
O elevador chegou mas já um casal muito enamorado aguardava a boleia. Pelas trocas de olhares e o brilho que lhes ofuscava os dedos anelares, de certeza que estavam em lua-de-mel, numa das suites do último piso.
Desceram.
Eles aos beijinhos, Sara encolhida, a ignorá-los e a voz interior a querer romper os lábios para soltar um:
- Também quero! Também quero que me beijem, que me abracem, que me sirvam de barco neste mar revolto, deixa-me ser tu, mulher! Deixa-me enfiar na tua pele e...
...E lembrou-se que estava quase a meio do mês e ainda não tinha o cromo castanho para a sua colecção.
- Não faz mal, ainda há tempo, estou exausta e um homem de castanho neste dia de chuva, só se vier coberto de lama! Chuva rima com cinzento, com bege gabardinoso, com chapéus-de-chuva pretos.
E o carro? Porque o deixara no estacionamento público se o hotel tinha garagem? Agora que nem uma sombrinha de bolso trazia?
Parou de rompante à porta, a temer desafiar a chuva.
Tão de rompante que alguma coisa pontiaguda a feriu nas costas.
- Perdão, menina! Não percebi que tinha parado. Magoei-a?
Sara reparou então que a pancada viera da ponta de madeira de um guarda-chuva com padrão tigresa… castanho.
-Mas que raio faz um homem destes com um chapéu tigresa? – pensou, enquanto mil estrelinhas se acenderam e a página da caderneta se escancarou. – Queres um cromo castanho? Ei-lo, atrás de ti!
- A culpa foi minha, senhor! Parei com receio da chuva. O carro está no estacionamento e não tenho nada que me proteja deste dilúvio…não esperava ficar molhada hoje, sabe? Mas há sempre surpresas à nossa espera, não é?
- Não é, Homem tigresa? Ofereço-te malícia nas palavras e dois olhos sedutores, abro o sorriso húmido e o botão do casaco, mostrando o decote arrendado da blusa com que me fotografaram o dia inteiro e tu nem dilatas um micro-milímetro das pupilas? Vais ser difícil de amansar, fera!
- Por acaso também lá tenho o carro, quer uma boleia?
- Finalmente um sorriso acanhado e um convite… o cromo está quase colado na caderneta.
Sara agarrou-lhe a manga da gabardina, depois deu-lhe o braço e aconchegou-se com a desculpa dos pingos de chuva (cada vez mais fracos), andando devagar, por causa dos saltos altos.
Nos lancis, puxava-lhe o cotovelo para o roçar no seu seio mas parece que as feras, especialmente os tigres, são de uma frieza inabalável e Sara não viu sinal de o domar.
- Tem um guarda-chuva muito original! Que mais coisas originais tem para me mostrar?
O homem tigresa decifrou finalmente as suas intenções mas recompôs-se num ápice, acelerando o passo.
- Este cromo não é para a minha caderneta, pronto! Afinal colecciono homens, não feras frívolas e sem fraquezas… mais oportunidades virão, falta muito para o fim-do-mês e…
- O meu carro está neste piso. – O homem tigresa cortou-lhe a ladainha muda, enquanto fechava o guarda-chuva, já dentro do parque subterrâneo.
- Coincidência, o meu também!
Caminharam ainda lado a lado, o olhar dele sombrio, o dela cansado pelo fracasso, o ambiente fosco e húmido do estacionamento.
- Pronto, o meu carro está aqui, menina. Foi um prazer.
O homem tigresa destrancou o carro com o comando. Sara, inesperadamente, abriu a porta traseira, empurrou-o para o banco corrido, fechou a porta e só a abriu muito tempo depois, quando os vidros embaciados ameaçavam implodir com o calor e a escassez de oxigénio.
- Tenho de ir. - Disse Sara.
- Espera! Leva o guarda-chuva. É uma oferta.
Sara quis dizer que não mas deixou-se convencer por aqueles olhos de tigre saciado, agora hipnotizantes.
O que nunca soube é que o guarda-chuva tinha sido o único objecto pessoal que a mulher do homem tigresa deixara lá em casa esquecido, quando o abandonou sem uma palavra sequer. Ele, que a amava mais do que a própria vida!
O guarda-chuva também nunca abriu o segredo de que estava destinado a planar, nesse fim de tarde, agarrado ao dono, ponte abaixo, até embater de chapão nas águas frias do Tejo.
Nesse dia, nesse buraco esventrado à terra para arrumar carros, o homem tigresa perdeu o único objecto que o ligava à ex-mulher.
Mas ganhou de volta o amor-próprio e a vontade de viver.
Todavia, Sara Arco-Íris, a coleccionadora de cores, nunca disso iria saber!
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio, lançado no blogue da Fátima.
Acompanha-nos nos blogues de cada um, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)
Dançam agora os dois, pés ligeiros a pisar as nuvens (sorridentes e aconchegados, como há sessenta anos atrás, nos bailaricos da aldeia, quando se apaixonaram), indiferentes à dor dos filhos e dos netos.
É que as lágrimas caem no chão. Não sobem ao Céu!
Em homenagem aos casais que têm partido com poucos dias ou horas de diferença, vítimas de Covid (conheço alguns)
Não conseguiu precisar o tempo em que esteve perdida de si.
Talvez meses, talvez semanas. Dias tão vazios como a sua própria mente.
Durante esse tempo, o que mais a incomodou foram as frases balofas de motivação, que toda a gente lhe oferecia sem serem solicitadas, como se fossem bons dias…mas a verdade é que uma delas estava certa:
Quando se chega ao fundo do poço, a única coisa que podes fazer é ir para cima.
1 de Janeiro, 0.00 horas
Noite fria de passagem de ano. Foi aí que chegou lá bem ao fundo. Talvez o instinto de sobrevivência estivesse a lutar para que não se afogasse nas águas de tanta dor.
Deixou-se emergir...
Ao amanhecer, abriu a persiana do quarto, já perra pela falta de uso. Depois escancarou a janela e deixou entrar a chuva. Ao longe, um brilhante arco-íris deu-lhe os bons dias… e deu-lhe também uma ideia…
...A vida é para colorir…
-Sara, a vida é para colorir, como se fosse uma caixa de lápis de cor, não é uma mancha preta - aquela frase fazia agora tanto sentido!
Por desejo, por vingança ou por prazer, Sara decidiu escolher uma cor por mês.
E um homem. Escolhido por uma cor.
- Talvez o amor também tenha cor.
Tirou a caixa de lápis da gaveta da escrivaninha e puxou o primeiro.
Azul marinho.
Fácil! Todos os totós de fato se vestem de azul marinho.
Arranjou-se e nem precisou exagerar porque a sua beleza era natural. Aliás, continuava a ser uma das modelos mais requisitadas da agência, apesar das últimas recusas.
Dia 2 de janeiro, 18.00 horas.
Encostou-se à porta do prédio onde muitas modelos, acompanhantes de luxo nas horas vagas, recebiam clientes. Sempre recusara os convites para este part-time mas sabia que ali a caçada seria fácil.
18.10 h.
Umas pernas apressadas pelo nervoso miudinho curvam a esquina em direcção à porta do prédio.
Sara sobe o olhar: Corpo franzino, casaco demasiado grande para o tronco. Casaco azul. Azul marinho…
- Olá. Elas não estão, posso ajudar?
- Olá, não te conheço, de que falas?
- O 6º C está vazio, queres dar uma volta?
- Porque não, onde?
- Ali, no Íbis, que é barato, se quiseres.
O Íbis foi barato, Sara não pediu dinheiro e o franzino de casaco azul marinho acreditou ter descoberto o tesouro de Alibabá.
- Tenho de ir, a minha mulher vai estranhar. Mas preciso voltar a ver-te.
Sara arrancou um folha do bloco que estava em cima da mesa-de-cabeceira e escreveu uma morada.
- Voltas a ver-me aqui. Quando quiseres.
O franzino voltou a enfiar o casaco azul marinho e saiu apressado, enquanto ela se vestia lentamente.
A porta bateu.
Sara sorriu. Já imaginava a figura do franzino quando chegasse à morada que lhe dera.
E compreenderia o que ela lhe quisera dizer sobre o próximo encontro.
Chegaria apressado pelo nervoso miudinho, o casaco azul marinho, demasiado grande, a esconder o tesão, abriria a folha para confirmar, voltaria a olhar embasbacado, enquanto, por cima do número da porta relia:
“Funerária Pais,
Profissionalismo e conforto na viagem do NUNCA MAIS"
- Ai Sara, Sara, Sara Arco-íris, colecionadora de cores! -Soou-lhe bem a alcunha, entoada frente ao espelho do elevador- Afinal não vai ser assim tão difícil!
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio, lançado no blogue da Fátima.
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Correu ontem nas redes sociais a entrevista ao Presidente da Câmara de Cascais, em que este paradigmizava o incumprimento do confinamento com pessoas que andam a passear trelas sem cão.
Cá a mim não me espanta nada.
Cada qual passeia o “fofi” que tem. E para muitos, o cérebro não passa de um animalzinho de companhia. Tão pequeno, tão vazio, que quando o levam a passear, mesmo à trela, se evapora na rua e ninguém o vê.
Grande, grande, só este povo português!
De tão elogiado no primeiro confinamento, passa agora a ser aclamado como o maior em número de novos casos de Covid-19 por milhão de habitante.
Pois nas próximas semanas, vão ver por aqui (e não só) como se pinta com palavras!
Não resisti ao desafio proposto pela minha querida Fátima, do blog Porque eu Posso, e nas próximas 12 semanas, vou pintando histórias de cores diferentes.
Mas não desejo ficar por aqui.
O que quero é oferecer-vos uma caixinha de lápis e convidar-vos a aderir a este desafio!
Os tempos actuais são escuros e colorir os dias ( libertando a imaginação, que essa não precisa ficar confinada) parece-me o desafio ideal.
Às portas de um novo confinamento, o que vai mudar na minha vida?
Quase nada.
A nível profissional, e porque sou daquelas privilegiadas (e agradeço taaaanto por isso) que não terá o trabalho em risco, aguardo directrizes. Provavelmente continuarei com horários desfasados. Ou turnos semanais… pouco importa.
A nível pessoal, a vidinha vai correr igual, desde que o sr. Corona se instalou em Portugal. Trabalho – casa - compras esporádicas no supermercado - desinfectar compras.
Desde Março, bebi café num estabelecimento uma única vez, enquanto aguardava uma consulta médica.
Almocei num restaurante (esplanada) também uma vez única, quando fui a uma consulta a Lisboa e não resisti (com muito stress à mistura) a matar saudades de duas pessoas que amo.
Esqueci que os centros comerciais existiam (mas visitava-os tão poucas vezes que foi fácil).
Eventos sociais: resumidos a dois funerais de familiares muito próximos.
Agora que penso nisso, concluo que nunca desconfinei, pelo que não me fará grande diferença voltar a este estado.
O que me faz mesmo diferença é viver com este medo permanente, sem previsão do dia em que poderei falar livremente com amigos e abraçar quem precisa de conforto.
Mas depois…depois penso que é graças a este comportamento (que a minha família partilha) que nos temos mantido protegidos.
Até aqui. Porque agora já não sei, ninguém está seguro.
E vem a revolta. Contra muitos daqueles que contribuíram para o grave estado em que nos encontramos: aqueles que replicaram festas e festinhas de Natal e de Ano Novo…que se passearam por aí sem cuidados…que se organizaram em grandes grupos, alugaram espaços de turismo rural e conviveram como se o Mundo acabasse no dia seguinte. Talvez por causa destes, o mundo acabou mesmo alguns dias depois para outros...
Agora confinamos todos. Menos a centena e meia que agora nos vai deixando diariamente.
Teremos lata para voltar a bater palmas à janela em forma de agradecimento aos profissionais de saúde???
Eu, cá por mim, prefiro esconder a cabeça debaixo da almofada, por vergonha alheia!
Gastamos mais energia para proporcionar o aquecimento em casa, sem dúvida.
Mas há pequenos gestos sustentáveis que podemos desenvolver ao longo do ano e que se repercutirão em menos lixo e ...menos acendalhas.
Um deles é guardar as cascas de frutos secos e usá-las nas lareiras ou salamandras. Por serem de fácil combustão, fazem o papel de acendalha, dando início a mais um serão de conforto.
Se, tal como eu, consomem muitos frutos secos com casca (e se tiverem lareira ou salamandra), pensem nesta ideia: em vez de encher mais um saco do lixo com cascas, guardem-nas num balde ou caixa e usem nesta altura.
Uma pequena dica de desperdício zero e de poupança, muito a calhar nestes dias, não?
O ano novo trouxe a esperança de dias melhores, sobretudo a nível da pandemia.
A esperança na vacina… a diminuição dos números…
E, sem dúvida, a primeira semana de 2021 fez-nos desejar ter 2020 de volta. Da palhaçada na casa-modelo da Democracia (querem eles fazer-nos crer!) aos números do COVID e o inevitável regresso ao confinamento… 2021 está a portar-se muito mal!
Ora eu vivo numa terra relativamente pequena e a pandemia, por aqui, não fez grandes estragos em 2020: um óbito numa idade muuuito avançada e alguns casos de infectados (em situação controlada).
Pois neste momento, é porta sim-porta sim!
Não há família que não tenha casos ou alguém em isolamento profiláctico (a minha incluída).
Entrou nos lares…
Há internados em estado grave.
Desconfio de todos.
Desconfio de mim própria!
Pela primeira vez, sinto medo da pandemia: porque agora sabemos que a Saúde está em ruptura e vão começar, mais hora menos hora, a fazer o papel de Deus, escolhendo quem morre e quem vive!
De quem é a culpa?
É de todos, não me venham com conversas!
É nossa!
Este é um pequeno testemunho de início de ano.
Para que não me esqueça e não descure a prevenção.
Se calhar… é mesmo bom desconfiar de tudo e de todos!
É que, por aqui, somos meia dúzia de gatos pingados. Com dúzia e meia de infectados.