Desde que decidiu fazer a sua colecção de cromos seguindo as cores dos lápis guardados na caixinha, nunca teve dúvidas sobre o cromo laranja.
Os homens de ombros fortes nunca lhe foram indiferentes. Gostava de apreciar aqueles músculos que ligam a cabeça ao pescoço e às omoplatas, movendo-se como troncos de cedros, fortes, rijos e ao mesmo tempo flexíveis.
E hoje, quando telefonou ao Laranjinha e lhe pediu para ir a sua casa, já sabia o que esperar:
- Que ele já tinha estado na casa de outras mulheres;
- Que traria aquele ligeiro cheiro a suor misturado com after-shave barato mas que ela tanto gostava;
- Que apesar de cansado – que um homem não é de ferro –, quando Sara lhe abrisse a porta, ele também abriria um enorme sorriso;
- Que viria com o famoso polo laranja - nada discreto, por sinal.
O que o Laranjinha não esperava é que desta vez, Sara o recebesse com um robe de cetim arrendado, apenas traçado por um nó frouxo na cintura.
E que em vez de o conduzir ao jardim, lhe dissesse ao ouvido, enquanto apontava para o quarto:
- Hoje carregas-me a mim!
E a bilha da Galp ficou à porta, em cima do tapete, à espera de que o “Homem do gás” tratasse de outro tipo de combustão…
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)
Enquanto a avó for viva, regressa sempre àquela aldeia alentejana que a viu crescer, para estar com ela.
Não sabe ao certo se é pelo amor à velhota ou se pelo sabor inimitável dos seus folares.
Se calhar, são a mesma coisa. O amor tem sabor a folar porque é feito com amor.
Passou lá a infância mas, de cada vez que chega, o arrepio mantém-se ao ver as casinhas caiadas de branco com a típicas barras azul cobalto.
Quando pequena, acreditava que as pessoas pintavam barras azuis para trazerem o mar para ao pé de si, já que estavam tão distantes.
Agora, a aldeia está cada vez mais deserta e só não parou no tempo porque o relógio da pequena torre da igrejinha - também pintada de branco e azul - empurra as horas cada vez que badala.
As ruas trazem-lhe boas lembranças da infância, embora estejam agora pavimentadas e com passeios bem delineados.
Percorria-as a correr, entre as poças de lama, no Inverno, ou as nuvens de pó, no Verão - que lhe provocavam ataques de tosse - com o primo Zé e o Nandinho.
O primo Zé morreu numa dessas Páscoas em que as ruas ainda eram um lamaçal até se chegar ao cemitério- também ele pintado de branco e azul.
Serenou-a perceber que o primo, que não resistiu ao mal no sangue, como dizia o avô, ficaria a sentir-se em casa - com o muro igual - e talvez não percebesse que estava morto e continuasse a correr com ela, escondido nas nuvens de pó.
Prometeu ali, enquanto olhava para os pés enterrados na lama, que estaria sempre com os avós na Páscoa e que a agora neta única iria confortá-los como Maria Madalena fez com a mãe de Jesus, segundo percebeu o Sr. Padre explicar nas aulas de catequese.
E o Nandinho.
Esse, cujos olhos eram da cor das barras da aldeia, brilhavam ainda mais, sempre que Sara regressava.
A avó diz que ele teve algumas namoradas.
Talvez. Mas, de cada vez que se cruzam, Sara não duvida que esses olhos azuis apenas tiveram uma única namorada.
É feio o que vai fazer.
Os escrúpulos têm limites. Mesmo a sua colecção!
Mas Sara sente - ou desculpa-se – que não o vai fazer para colar um cromo.
Vai terminar o que ficou suspenso há alguns anos atrás, como se o relógio não badalasse horas nos sentimentos.
Tentará libertar o Nandinho da ideia de que ela é deusa feita de pó, irreal e inatingível.
Talvez ele assim consiga prosseguir a sua vida, aqui na aldeia.
O encontro marcado, com os últimos raios de sol a tentarem espiá-los entre os chaparros, nas traseiras do fumeiro da avó -também ele pintado de branco azul -, é feito de silêncios, que o canto das cigarras dizem tudo o que eles pretendem falar.
Os olhos azuis do Nandinho e as barras da empena, tanto azul, tanto mar imenso que cada vez ondula com mais vigor, tanta infância, tanto riso, o primo, os avós…e Sara pede ao relógio da pequena torre da igrejinha que não volte a badalar e que o tempo pare ali, naquelas cores de pura felicidade.
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)
Sempre mo disseste e nunca soubeste (ou quiseste) explicar porquê.
Por isso, quando pintavas paisagens (e como adoravas pintá-las!!!!) transformavas a cor das ervas e das copas das árvores, recusando tingir a tela com essa tonalidade. Assim criaste essa conjugação de cores inédita que, a princípio, desgostou todos os críticos mas que agora aclamam, vangloriando as tuas cores bravias e contrastantes!
Certo também é que agora estás longe e eu…aprendi a odiar o verde escuro!
Tenho olhado para a caixa de cores, aberta em cima da cómoda. Olho-a de manhã, pelo meio-dia, quando as sobras encolhem. Revejo-a à noite, apenas com o candeeiro da mesa de cabeceira aceso.
Não há volta a dar! O lápis é verde escuro a qualquer hora do dia e eu tenho de recolher o cromo com essa cor.
Amanhã trato disso
E amanhã…
E amanhã…
25 de Março, 16.00 h
Tem de ser hoje! Desde manhã que percorro a rua e o centro comercial e não há homem, gaiato, travesti, que me apareça de verde escuro…
Ou serei eu que desvio o olhar, de cada vez que os meus olhos captam a cor?
Ao longe…
Sim ao longe, entre as folhagens, vejo uma figura toda vestida de verde escuro. Ou será miragem?
Aproximo-me…É homem.
Pela roupa, percebo que é jardineiro municipal.
Tem graça! As minhas memórias de criança guardam jardineiros velhos, barrigudos e com as mãos rudes e sujas, de tanto escarafunchar a terra.
Este é novo. Pelas mangas arregaçadas, vê-se que faz ginásio.
E tem uns olhos verdes que ficam ainda mais brilhantes quando o sol lhes reflete a cor da t-shirt.
Aproximo-me.
Ele sorri e continua, mais concentrado no que lhe sai dos phones do que na minha presença.
- Olá. São sardinheiras, não são? A minha avó adorava pendurá-las à janela.
- Não menina, Na verdade, são gerânios, ou geranium, se quiser o nome científico. Muitas pessoas confundem-os com as populares sardinheiras - pelargonium - mas, na verdade, são espécies distintas.
- Fantástico! As coisas que você me ensina! Aposto que me conseguiria transformar em flor e abrir-me as pétalas como se eu fosse um gerânio…
Oiço o riso aparvalhado do Geraniozinho e um silêncio de quem está a medir se serei louca ou prostituta.
- E tem umas mãos tão delicadas a tratar das flores…também usa a ferramenta? Ou trabalha apenas com as mãos? Talvez me pudesse ensinar a tratar das sardinheiras da minha avó…
Baixo-me e começo a mexer nas plantas, roçando-lhe os antebraços, tentando enfiar os meus dedos dentro das luvas grossas que o Geraniozinho usa.
Um homem não é de ferro
Nem de pau, mesmo que seja Geraniozinho... daí a pouco sussurra-me:
- Queres ir ver onde guardo a ferramenta?
Vamos em silêncio até à casinha de madeira que serve de apoio ao jardim.
Fecho os olhos e quando os abro, apenas vejo verde escuro…a t-shirt do Geraniozinho, ondulante, em cima de mim.
Então, percebo que sou uma flor. Sem pétalas. Apenas folhas verde escuras e sinto que, por dentro, também me corre líquido verde escuro.
E odeio-me tal como tu odiavas este tom e odeio-te por me teres deixado uma caixa com um lápis verde escuro. Não sei quem sou tal como as pessoas não sabem se aquela flor é uma sardinheira ou um gerânio e saio de lá em silêncio, a acreditar que o céu é verde escuro e nunca foi azul e o Sol, esse, não passa de um galho seco que nenhum jardineiro conseguirá fazer florir!
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)
Nunca foi moça de acordar cedo. O colchão só amacia quando o sol começa a nascer porque até lá, é uma amálgama de pedras pontiagudas que lhe ferem memórias e despertam fantasmas.
Por isso, nunca entra no ginásio antes das 11 da manhã.
Este mês, tem reparado em dois rapazes inseparáveis. O descaradão, que não desprega os olhos de si e o amigote, que parece a sombra do outro e que, indubitavelmente, o idolatra.
Todos os dias, o descaradão e o amigote já estão completamente suados quando Sara entra, ainda fresca e cheirosa.
O descaradão, sempre de roupa preta e justa, ganha novo fôlego e recheia os alteres com mais um disco.
O amigote, para não passar vergonha, afasta-se e vai para o tapete fazer uns abdominais.
Sara sabe que a cor de Março é o preto. Até já escolheu o cromo. Só espera a oportunidade perfeita…
12 de Março, 11.00 h
Os encontros no ginásio estão a dar proximidade.
O descaradão, sempre de sorriso alarve, enquanto encolhe a barriga, espeta o peito e morde o cantinho direito do lábio, vai falando entre dentes com o amigote e miram-na de alto a baixo. Quando Sara os encara, com ar –dissimuladamente – tímido, o descaradão abre o sorriso e cresce 10 cm, qual pavão em fase de acasalamento.
O amigote, esse, baixa os olhos de imediato, ruboriza o rosto até ficar da cor da t-shirt à cava da Decathlon, sempre de vermelho vivo, e encolhe-se atrás do outro.
20 de março, 12.00 h
Sara está a meio do treino e sente os 4 olhos cravados nos seus glúteos, cada vez que termina um squat. Faz de propósito. Menos técnica e mais movimentos sensuais… a caderneta aguarda…o cromo está escolhido… na próxima semana há trabalho em Madrid e o mês está quase terminado…
22 de Março, 11.00 h
Sara entra pela porta e até as paredes do ginásio sustêm a respiração. Está deslumbrante, no seu macacão branco, colado à pele , apenas preso nas laterais por finas tiras de licra.
O descaradão esquece-se que está em prancha e bate com o queixo no tapete.
Ao amigote, hoje ainda mais invisível porque está todo vestido de preto, esbugalham-se-lhe os olhos até à ponta do nariz.
Sara passa por eles.
- Olá colegas!
- Oi, oi, miúda! Que pena eu não ser anão! – Diz o descaradão, de imediato.
- Porquê? – pergunta Sara, já adivinhando a resposta.
- Porque hoje és a Branca de Neve e assim partilhávamos o mesmo quarto…
- Vocês são só dois. Se fossem sete, talvez pensasse nisso.
- Eu valo por seis. Aqui o pingarelho pode ser o sétimo.
Só faltava essa. Há pessoas assim em todo o lado. Só brilham se os outros lhe servirem de flash.
Sara riu muito (só por fora, que por dentro não achou piada nenhuma)
- Quem sabe se à saída não vos dou uma boleia para a mina de ouro? – murmurou Sara.
O que é certo é que os dois amigos saíram mais cedo, rumo ao balneário.
Quando ela chegou ao estacionamento, lá estavam os dois, a simular conversa: o amigote entediado e o descaradão mais agitado, com um sorriso triunfante.
Sara entrou no carro e fez por passar entre eles. Separou-os com o carro. Um de cada lado.
Abriu a janela do lado direito e ordenou:
-Vá anãozinho, entra.
Porque estava a hesitar, debruçou-se e abriu –lhe a porta.
Ele obedeceu. Atónito.
Antes de arrancar, Sara virou-se para o lado esquerdo.
O descaradão continuava especado, de boca aberta, sem reagir, ao ver o amigote sentado no banco do carro.
- Adeus, seis anões! Sabes, prefiro só um de cada vez!
Os pneus chiaram e nenhum a ouviu terminar:
- Quem escolhe os cromos sou eu, parvalhão convencido. E este até foi duplo!
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)