A rua do Cara d’Alho (conto)
Desligou o telefone e foi como se a fechadura da masmorra onde aprisionara as memórias se tivesse estilhaçado.
Um turbilhão de imagens soltaram-se e invadiram-lhe os sentidos.
Turvou-se-lhe a visão, emudeceu-se o presente e José voltou a ser o menino franzino na sala daquela escola velha e a cheirar a bafio.
Sempre se sentira diferente dos colegas. Evitava as brincadeiras de rapazes e preferia ficar a um canto do recreio, a imaginar um mundo paralelo, onde fazia de conta que era.
Que era mil personagens que inventava e representava.
Os colegas não lhe perdoaram a diferença.
José Carvalho sofreu aquilo que hoje já tem nome: foi vítima de bullying.
Nunca lhe bateram mas os insultos magoavam mais do que um soco nas partes baixas.
Acabou por ficar conhecido como o Cara d’Alho, pelo trocadilho do sobrenome e pelo prazer que todos sentiam ao assistir à sua humilhação.
Um dia tomou coragem e pediu ao pai para desparecerem daquela vila ignóbil, onde até os adultos já o cumprimentavam pela alcunha, com ar de escárnio.
Teve sorte.
Há muito que o pai matutava em emigrar para os Estados Unidos, para onde tinha ido um primo que jurava estar rico.
Nessas férias de verão pisaram a terra de todas as oportunidades e nunca mais regressaram a Portugal.
E agora, ao fim de tantos anos, o telefonema…
José reconheceu o António Vasconcelos quando este se apresentou. Tinham sido colegas na escola e recordava-se bem dele. O queixinhas da escola, que contava todas as mesquinhices à professora, a troco de ser o favorito. Mentiroso e manipulador, que chegara a acusar um amigo de um disparate que ele próprio fez para sair impune.
Agora apresentava-se como presidente da Câmara lá da terra e convidava-o para a inauguração.
Haviam decidido atribuir o seu nome a uma rua, prestando homenagem pela sua carreira.
O que é facto é que José Carvalho, ou melhor, Joe Carval, como era agora conhecido mundialmente, tornou-se actor, como sonhara no recreio da escola primária.
E mais. Acabara de ganhar um Óscar e a euforia ainda o entorpecia.
Joe Carval acedeu ao convite.
Regressou ao lugar onde as memórias pareciam garras a sugar-lhe o orgulho que agora sentia.
Sorriu durante toda a cerimónia. E mais ainda quando os antigos colegas o bajularam, fazendo-se esquecidos do sofrimento que lhe causaram muitos anos atrás.
Há cicatrizes que nunca fecham mas eles não sabem.
Conforme combinara com o presidente, ele próprio ofereceu um repasto aos ilustres do lugarejo. No restaurante mais chique da vila.
E voltou para os Estados Unidos.
Já passara um mês mas Joe Carval ainda se ri de cada vez que visualiza o ar atónito dos convivas quando viram a ementa.
Uma entrada de pão acompanhado com azeitonas temperadas com alho e uma açorda d’alho.
Ele bem sabe. Há coisas que nunca mudam.
E é isso que está a pensar agora, enquanto contempla o chão.
Joe Carval tem um estrela no Passeio da Fama, em Hollywood.
E tem uma rua com este nome na terra natal. A que todos chamam, com tom de gozo,
a rua do Cara d’Alho