Abril e os presos políticos
Estou aqui a pensar nos presos políticos que conheci.
Não me recordo de muitos porque era pequena mas mantenho vivas algumas conversas dos meus pais com os vizinhos. Sobre os presos e sobre os "bufos", que alegadamente conquistavam a liberdade por denunciarem camaradas.
Curiosamente, o impacto da prisão política chegou-me aos vinte e tal anos, já a trabalhar, quando me contaram a história de dois homens.
Um dos trabalhadores, meu colega, homem da terra, tinha sido preso político. Trabalhava na equipa do "asfalto".
Um engenheiro de Lisboa, que acompanhava algumas obras, vinha cá algumas vezes por mês. Também tinha sido preso político.
Quis o destino que se reencontrassem aqui, ao fim de muitos anos. Haviam sido companheiros de cela na prisão.
Prefiro não imaginar o que passaram juntos. Mas presumo que dois presos políticos na mesma cela sejam dois homens nus. E não me refiro à roupa. Dois homens torturados, em sofrimento extremo, não terão máscaras, segredos, preconceitos. Revelam a alma na sua essência, nas conversas, nas confissões e partilha de sonhos e pensamentos.
Ora eu assisti várias vezes ao encontro deles e aos cumprimentos que faziam.
E isso é que me impressionou.
O engenheiro rasgava um sorriso afectuoso, os olhos brilhavam e dava-lhe um abraço apertado. Percebia-se que ficava feliz por vê-lo.
Já o Sr. Matias, nunca o vi efusivo no cumprimento. Mantinha uma certa distância emocional e tratava-o por Sr. Engenheiro.
Sempre.
Talvez o Sr. Matias revivesse no companheiro de cela o sofrimento de décadas atrás.
Mas estou convencida de que não era isso.
Cá para mim, dentro do Sr. Matias, a revolução de Abril não se fez por inteiro.
O espírito de subserviência e de inferioridade do campesinato alentejano manteve-se intacto naquele homem.
E um engenheiro, mesmo que tenha sido seu irmão num momento difícil da vida e até tenha defecado a seu lado, será sempre um engenheiro.