As máscaras da vida
I
Já estava vestida, frente ao espelho e preparava-se para colocar a máscara. Era hora de descer do quarto de hotel, para que chegasse ao baile de Carnaval à hora marcada.
Conhecera-o num site de encontros, num momento de curiosidade e de maior solidão. Algumas colegas divertiam-se a marcar encontros casuais nesse site e ela, casada, nunca tivera coragem de perguntar como é que isso funcionava.
O seu casamento mantinha-se apenas à hora de jantar, que era cada vez mais tarde porque o marido, engenheiro civil, tinha projectos importantes para concluir. E ela, professora, passava os serões a preparar aulas e corrigir testes.
Era uma vida tão diferente da época em que se conheceram. Tão jovens, loucos e felizes! Passavam noites a discutir filosofia, a esmiuçar as letras das canções, a descrever os países que queriam conhecer! As primeiras férias juntos, então, foram inesquecíveis. Numa noite bem bebida, passaram por um tatuador e ela só saiu de lá com a inicial do seu amado desenhada atrás da orelha esquerda! Já aí ela tinha a certeza de que seria um amor para sempre!
Mas agora era tudo diferente e o novo amigo, com quem mantinha contacto virtual diário, despertava-lhe todos os desejos! Achava-o culto e atrevido, com um humor irresistível.
Num momento de loucura (mentira, tinha sido premeditado), lançou-lhe o convite cheio de meias palavras maliciosas, embora o pânico de ser descoberta quase a sufocasse.
Iriam encontrar-se no baile de máscaras de um Hotel, vestidos a rigor, que o mundo é pequeno e ela não correria o risco de ser reconhecida. Subiriam depois para o quarto já reservado, onde trocariam a força das palavras pelos corpos que se queriam conhecer!
Foi fácil enganar o marido. Era hábito juntar-se com os colegas de faculdade numa festa de Carnaval, para relembrar os bons velhos tempos e o marido o-d-i-a-v-a ir! Por isso o convidou, sabendo que ele recusaria (acertou, que por essa altura, já tinha tudo combinado com o seu amigo e com o Hotel).
Deu a sua máscara a uma amiga (que ingenuamente lhe agradeceu), de modo a que, se o marido visse fotos no Facebook, reconheceria a máscara e pensaria que era ela.
II
Ele saiu do carro, disfarçado de Batman e com um pequeno lenço vermelho no punho direito, o sinal para ser reconhecido. Sentia-se ridículo porque detestava o Carnaval e as últimas vezes que se mascarou, ainda na Primária, foi a toque de nalgadas, obrigado pela mãe, para participar no desfile da escola.
Por precaução, tinha escondido o fato junto do pneu sobressalente e teve alguma dificuldade em trocar de roupa dentro do carro.
Embora gostasse de seduzir as mulheres, nunca tinha chegado a este patamar. Era casado e trair a mulher, embora o desejasse, estava a causar-lhe algum desconforto. Mas paciência. Há muito que não cometia uma loucura (a última quase lhe custou a vida, quando rasgou um pulso ao saltar de para-quedas, cuja cicatriz o fazia recordar sempre que levantava o braço) e derramar charme através de computador já não lhe dava “pica”.
Dentro do fato justo, ainda se sentia elegante e as horas no ginásio tinham dado resultado. Ela iria ficar surpreendida com a sua aparência… a noite prometia!
III
Quando ela chegou ao salão de baile, procurou o seu Batman, sem conseguir disfarçar a ansiedade. Tinha ensaiado o momento e fez a sua dramatização: tocou-o nas costas, embora a sua enorme saia rodada, digna do Carnaval de Veneza, tivesse desfeito a surpresa. Apenas com um gesto, convidou-o para dançar. Ela ficou admirada com o corpo musculado que a seguia entre a multidão. Ele ainda disfarçou a perplexidade perante o decote exuberante, onde se adivinhava uma longa noite de prazer.
Dançaram um pouco em silêncio mas a atração que os consumia falou mais alto. Ele tirou um braço da sua cintura e desviou-lhe o cabelo da máscara, para a beijar no pescoço.
IV
Ela reconheceu-lhe a cicatriz no pulso. Mas nada disse.
Ele leu a sua inicial no pescoço dela. Mas nada disse
De imediato, ela fez sinal que iria buscar bebida, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Ele ainda não lhe tinha ouvido a voz e era impossível reconhecê-la com a máscara. Subiu ao quarto e só desceu na manhã seguinte.
Ele ficou petrificado no meio do baile mas aliviado por ela não o ter reconhecido. Saiu do hotel, despiu-se mesmo ali e regressou a casa.
V
Ela voltou na manhã seguinte, com olheiras da farra que tivera com os colegas, como era suposto, e deitou-se.
Ele mostrou-se feliz por não ter ido aturar aquela gente e lamentou o cansaço pelo serão no escritório a terminar um projecto.
Por essa altura, já cada um colara ao rosto uma máscara que iria durar toda uma vida!