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A 3ª face

Qui | 08.02.18

CRISES (super-histórias de mini-mulheres ou vice-versa #1)

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Conheci-a já idosa, viúva e de má saúde! Um cancro na mama tinha-lhe derrubado algum vigor mas ainda mostrava a garra de quem lutou pela sobrevivência toda a vida. Habitava uma casa velha de paredes grossas, caiadas, no meio de um monte isolado, algures no Alentejo. Em dias invernosos, só o lume de chão lhe fazia companha e lhe amornava a alma. E os animais. Os cães que só a ela davam mão, as galinhas e os patos, que há que cuidar diariamente e que a ouviam desabafar as dores. E um par de ovelhas, a quem afagava os rolinhos da cabeça, como se fossem os do filho.

Pois, o filho! O filho único, depois de se ter separado, tinha ido viver com ela e foi a razão de não ter vergado à doença e ao cansaço e de se sentir feliz todos os dias. Até construíram uma casinha de banho ao lado da casa, de modo que a vida estava composta.

Mas o negócio por conta própria, a quase duas dezenas de km de casa, fazia com que o filho só voltasse a altas horas da noite e já se sabe que as pessoas do campo se deitam com as galinhas. Isso pouco importava. De manhã cedo, quando se levantava, lá ia espreitá-lo ao quarto que isto de ter um filho com 50 anos é  igual a tê-lo com 5 meses. Os filhos não têm idade. Um filho é um filho e pronto!

Não sabia ler nem escrever mas a sua imensa sabedoria fora  bebida na vida e isso comovia-me, cada vez que a visitava.

Um dia, em plena crise, quando o governo decidiu encurtar reformas e suspender subsídios, perguntei-lhe se estava em maiores dificuldades. E, de forma espontânea, sem perder tempo a pensar, olhou em redor e respondeu-me:

- Crise, menina? Eu nasci na crise e sempre vivi na crise. Passei muita fominha, vi irmãos morrerem porque não havia medicamentos. Comecei a trabalhar aos 7 aninhos, descalça e nunca fui a uma escola. Passei a vida a governar os poucos escudos que se ganham no campo, com a ajuda da horta e dos animais que crio. Ainda hoje os tenho, não vê?

Crise? Isso é para aqueles que metiam no lixo mobílias inteiras, ainda boas, porque já não estavam na moda e compravam novas. Habituaram-se a ter o que não podiam, é o que é.

Eu sempre fui pobrezinha e hei-de continuar a ser, mas não devo nada a ninguém!

 

Por essa altura, já o filho tinha arrendado uma casa melhor, numa pequena aldeia e os pedreiros tardavam em terminar as obras para que se mudassem. Era o que ele podia fazer pela mãe!

Sem esperar, a crise chegou-lhe numa manhã. Veio de carro, trazida por uns amigos do filho.

A sua única riqueza fora roubada do outro lado do mundo e ela ficara sem nada! O filho partiu de férias ao fim de longos anos sem grande descanso e lá morreu, assim de repente, sem avisar, longe do seu afago de mãe.

Regressou dentro de um tarro mais bonito do que aqueles que usava para aquecer a água, feito pó, que não houve dinheiro para a transladação do caixão.

Os netos, já adultos, foram viver com ela. Mudaram-se todos para a casinha da aldeia.

A última vez que a visitei, baixara as armas, deambulava no campo da batalha à espera que a chamassem para reencontrar o seu tesouro. Tinha os olhos fixos no lume de chão, que sarapantava gélido entre os pauzitos, unido à desgraça.

Para aqueles que trocavam de mobília e se queixavam da crise, a vida está lentamente a retomar o seu curso.

Mas a minha velhinha sabe bem que há outras crises que quando chegam, ferram-se na gente para sempre!

 

 

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