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A 3ª face

Qua | 10.10.18

Desafio da escrita - dia 10: morte

 

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A mulher não lhe atendia o telefone desde que saíra de casa. Por isso, decidiu enviar a mensagem:

- A minha vida sem ti não vale a pena. Que sejas feliz sem mim. Adeus.

 

João bebeu mais um gole de medronho, desta vez com todos os comprimidos que retirara da embalagem de calmantes que a mulher deixara na gaveta da mesa-de-cabeceira.

Ela tomava-os há anos, justificando que era para não se aperceber das bebedeiras do marido, quando este chegava fora de horas.

Até que nem acontecia muitas vezes, caramba. Mas um homem tem de espairecer de vez em quando, na companhia dos amigos. E reconhecia que, com os copos, era implicativo. Por isso, pedia-lhe sempre perdão no dia seguinte.

 

Se a mulher ainda o amasse, viria a correr salvar-lhe a vida. Ou então… a morte.

Ele acreditava que ela viria a tempo. Chamaria a ambulância e uma lavagem de estômago salvar-lhe-ia a vida e o casamento.

Deitou-se, já a sentir o tecto a ondular, como sempre acontecia quando bebia demais.

Não tarda, os comprimidos fariam efeito. Esperou.

 

Então, cada vez mais perto, ouviu a sirene da ambulância.

Estacionou à porta do prédio. Ouviu a porta correr e as botas apressadas dos bombeiros.

Sorriu.

Esperou. Se tocassem à campainha, não iria abrir, esperaria que rebentassem a porta.

Ou talvez a mulher viesse com eles…

Talvez os comprimidos fizessem efeito e ele fosse encontrado inconsciente…

Ouviu barulho, passos apressados nas escadas. Depois vozes.

Depois nada.

Esperou.

Já dera tempo de baterem, de derrubarem a porta, de a abrirem.

E nada.

Levantou-se, cambaleante e espreitou no óculo.

Foi quando viu os bombeiros a transportarem na maca o vizinho da frente, já inerte. O velhinho, finalmente, tivera descanso.

Petrificado, ficou parado, vendo os bombeiros descerem as escadas.

Ouviu o motor da ambulância, a sirene cada vez mais longe…

Voltou para a cama, com o coração descompassado, assolado pelas dúvidas.

Iria morrer?

A mulher ignorara a mensagem?

Nem sequer a viu?

Teria tempo de, ele próprio, chamar uma ambulância?

O efeito dos comprimidos demoraria?

Agarrou na caixa dos comprimidos para ler a bula e descobrir os procedimentos em caso de sobre-dosagem.

Foi quando percebeu que engolira a porra de uma embalagem inteira de pílulas contraceptivas.

 

Bebeu mais um gole de medronho.

A morte enganou-se na porta, concluiu.

E adormeceu.

 

 

Texto inserido no Desafio da escrita

Palavra do dia 10: morte

 

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