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A 3ª face

Sex | 05.10.18

Desafio da escrita - palavra: alho

alho piracaia trançando carlos.jpg

 

Quando o empregado de mesa chegou com a sopa alentejana que escolhera no menu, não conseguiu esconder as duas grandes lágrimas que lhe rolaram pela cara.

Sopa alentejana, no seu Alentejo, era uma valente sopa de feijão com hortaliças e, quiçá, uns pedaços de toucinho e linguiça.

Aqui, no restaurante a que a filha a trouxera, dizendo que era de cozinha genuinamente alentejana, isso era, afinal, uma açorda de alho!

 

Há muitos anos, quando saiu do monte para vir servir para a casa dos patrões, na capital, jurara nunca mais comer uma açorda.

Esse tinha sido o seu almoço e jantar durante dias a fio, nos tempos da míngua.

Os pais trabalhavam na herdade, onde os pais dos seus pais também tinham trabalhado, de sol a sol, 6 dias por semana. 

Paravam ao Domingo para a missa na capela e para tratar da horta.

 

A única coisa que nunca faltou em casa foi trigo, com que a mãe amassava e cozia o pão que alimentava os 5 filhos.

Da horta do pai, vinham os coentros e os alhos, que ela tinha de regar diariamente, ao voltar da escola.

Era disso que se fazia a açorda. Uma pinguinha de azeite no Verão, quando a talha já começava a ficar vazia. Com um  ovo para cada um. No Inverno, apenas meio ovo, que as poedeiras encolhiam-se com o frio.

No dia de S. João, acompanhavam com uma sardinha assada, que sabias aos céus.

Na ceia de Natal, a mãe lá conseguia uma posta de bacalhau.

 

Quando aos 12 anos começou a trabalhar, era o que levava para comer. 

Por isso, a açorda sabia-lhe ao frio dos pés descalços nas noites de Inverno, aos picos do tojo em pleno verão ou ao pó do trigo durante a ceifa.

Tinha o cheiro da barriga vazia, da tristeza da mãe e da pele áspera do pai, cansado de rachar lenha para a chaminé de chão, onde se aqueciam e cozinhavam.

 

Prometera que nunca mais comeria uma açorda.

E agora?

O que fazer perante aquele prato de porcelana chique que tinha em cima da mesa?

Como explicava ao resto dos convivas, no dia dos anos do genro, que não conseguia comer o que havia escolhido?

 

Fechou os olhos e levou a primeira colherada à boca.

Uma coisa era certa. Aquilo era tempero alentejano.

O pão era caseiro, como aquele que a mãe amassava e levava ao forno depois de benzido com o sinal da cruz, para que crescesse.

Os coentros tinham o aroma das mãos do pai, quando este chegava da horta e a abraçava.

Imaginou, pelo sabor dos alhos, que deveriam ter sido arrancados da réstea pendurada na cozinha, como a mãe costumava fazer.

O sabor da açorda, ao fim de quase 50 anos, já não lhe soube a pobreza.

Tinha o gosto do tarro aquecido no borralho, da imensidão da planície quando se assomava à porta, das canções à desgarrada da monda do trigo.

Soube-lhe ao colo da mãe e à sua meninice.

 

Apesar da fome e da dureza desses tempos, tinha sido feliz.

E mais duas grandes lágrimas lhe escorreram até à boca.

Agora de saudade.

 

 

Texto inserido no Desafio da escrita

Palavra do dia 5: alho

 

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