Desafio da escrita - palavra: amor
Tinha frio.
Já não sabia há quanto tempo estava deitado naquela cama estreita. Muito diferente do leito onde passara os últimos anos. Com ela. Sempre. Todas as noites.
Tentava reconstituir o dia mas a exaustão fazia-o duvidar se as memórias eram reais ou parte de um pesadelo.
Pensava na mulher.
Amava-a tanto e há tantos anos!
Com todas as suas forças.
Começaram a namorar ainda na escola e ele sempre lhe demonstrou o quanto a adorava. Era a sua namorada! Os ciúmes que lhe mostrava não eram prova disso?
Por vezes, exagerou mas sempre reconheceu logo a seguir.
Ela compreendia o seu feitio intempestivo. Afinal, já vinha desde criança, quando lhe entrava o diabo no corpo, como a mãe costumava justificar as suas birras às vizinhas da rua.
Quando casaram, a sua princesa tornou-se tudo para si. E por isso, não suportava que a esposa cumprimentasse outros homens. Nem que fossem primos, sequer.
Nessas ocasiões, descontrolava-se, cegava e magoava-a. Às vezes, ela amanhecia com um braço roxo ou um olho mais inchado.
E ele desfazia-se em desculpas, prometia que não voltaria a descontrolar-se, comprava-lhe flores, leva-a a jantar.
E acreditava que a fazia feliz. Esses momentos menos bons eram naturais num casamento. Sobretudo quando um marido ama tanto a sua mulher!
Na véspera, faltara novamente à promessa. Depois de um petisco com os amigos, apanhou a mulher à conversa com um homem à porta de casa. E cegou, mais uma vez.
Por muito que ela lhe gritasse que era o irmão, ele nem a ouviu. Não sabe o que fez mas assume que exagerou.
Quando se foi deitar, a mulher continuava estendida na carpete da sala.
E não fosse o raio da vizinha, na manhã seguinte, ter estranhado que o pão continuava à porta, quase à hora do almoço e os dois carros estacionados no quintal – sinal de que nenhum tinha ido trabalhar - e ele teria tido tempo para acordar, tratar da mulher e pedir-lhe perdão.
Mas não.
A cusca da vizinha fez questão de ir tocar à campainha e chamar por eles, para saber se estavam bem.
Ele acordou com o barulho, assomou-se à janela, viu-a e recuou.
Fingiu que ninguém estava em casa.
E a vizinha, que conforme ficou registado no depoimento, já desconfiava dos maus-tratos, ligou para o 112.
Quando a polícia chegou, ele ainda não tinha ido à sala e não se apercebera que a mulher continuava imóvel. Com a carpete tingida de sangue.
E amava-a tanto! Porque é que o juiz escarneceu quando ele o afirmou?
Mesmo agora, na cela, enquanto revia a sua vida, continuava a sentir que a amava. Tanto!
E ela a ele.
E não duvidou, nem por um minuto, que quando saísse da prisão e ela se levantasse da cama do hospital, voltariam a ser felizes. Afinal, era um amor para a vida...
A Violência Doméstica é um crime público, o que significa que o procedimento criminal não está dependente de queixa por parte da vítima, bastando uma denúncia ou o conhecimento do crime, para que o Ministério Público promova o processo.
E violência doméstica não se esgota em agressões físicas. O artº 152º do Código Penal define este crime como
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
Se é vítima ou tem conhecimento deste crime informe-se, procure apoio ou denuncie numa entidade local ou através destes canais:
- Linha de Emergência Geral - 112
- Linha de Emergência Social - 144
- Serviço de Informação a Vítimas de Violência Doméstica - 800 202 148- Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) - 707 200 077
- GNR ou PSP da Área de Residência
Que nenhum amor justifique o desamor!
Texto inserido no Desafio da escrita
Palavra do dia 31: amor