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A 3ª face

Seg | 13.07.20

Desafio dos Pássaros #2.12

( o penúltimo)

 

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Tema: Mais oito

 

Pontinha

 Espero que esta carta chegue ao destino para que percebas que não fugi.

Uma destas noites, depois das alarmantes notícias do telejornal, consegui convencer os meus avós a fazer o confinamento na nossa pequena aldeia.

Sei que havia prometido nunca voltar mas é mais seguro estar aqui e eu quero muito protegê-los. São o meu bem mais precioso e os dois alicerces que me seguram à vida.

Infelizmente, aqui não há rede de internet nem da minha operadora  de telemóvel.

Tenho relembrado as nossas longas conversas.

Embora não queira, penso em ti.

Ninguém consegue contrariar o coração.

Todavia, o meu medo é avassalador.

Sei que nunca serás feliz a meu lado.

É impossível remar dentro de um barco naufragado!

 

Sabes aquela árvore de que tanto te falei?

Escrevo-te à sua sombra. É para aqui que volto sempre que me perco.

Ela chama por mim. Um destes dias, volto a subir.

E eu, que jurara nunca mais cá voltar!

Esquece-me Pontinha. Eu fico bem!

 

Mas eu já me decidira mesmo antes de ler a carta.

Meti um pequeno saco dentro do carro, despedi-me com um “volto em breve, não se preocupem” e ainda consegui ouvir os gritos da minha mãe:

- Mas onde vais? Está tudo fechado…olh’ó COVID!!!

 

Duas horas depois, a temperatura dolente do Alentejo avisava-me que estava perto.

Sem GPS nunca chegaria à aldeia. O caminho desnudado esconde-se entre trigais e onde alguns veriam palha seca, eu vi o ouro reluzente que me conduziria ao tesouro.

Parei por imposição do GPS, que me mostrou que aquele portão pintado de azul era o meu destino.

O carro quebrou o silêncio da aldeia em confinamento e duas cabeças se assomaram à janela.

Reconheceram-me e com ar surpreso mas um enorme sorriso, vieram ao portão.

- Sr. Enfermeiro, por aqui?

Após um cumprimento telegráfico, perguntei:

- Onde está a vossa neta?

- Foi à horta buscar umas verduras para a sopa. Não se deve demorar pois já abalou há tanto tempo.

- E onde é a horta?

- Vê aquela azinhaga? É conhecida pela Azinhaga das Onze Voltas. Onze curvas, como se diz na cidade. A horta fica na nona. Vá até lá que a menina vai ficar contente. Sabe, voltou a piorar.

- Meti-me no carro. Primeira volta, contei.   Faltam oito!

O coração disparou, empurrando-me como uma seta para o alvo.

Reconheci a horta pela enorme árvore que ela me descrevera.

O açude, quase seco, espelhava uma figura estranha pendurada em cima da árvore.

Instintivamente, fechei os olhos...

 

(continua)

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