Desafio dos Pássaros #2.2
Tema da semana: É que isso de médicos, nunca fiando
Memórias são como as nuvens. Às vezes, num céu limpo, surgem quase por magia, sem nos apercebermos.
Veio-me à memória o início da doença da minha avó Pulquéria. Mulher determinada e apaixonada pelo marido.
Todavia, quase aos 70 anos, começou a mudar. Tinha dias muito agitados, outros até se esquecia dos nossos nomes.
Contudo lembrava-se de ir, semanalmente, ao médico de família.
Todas as semanas tinha uma dor, desconfiava de uma doença grave, queria fazer um novo exame…
A família começou a estranhar.
Ainda mais que, durante uma valente gripe que a levou à cama por 2 semanas, se recusou a ir ao Centro de Saúde.
Assim que melhorou, lá tratou de marcar consulta, sem antes passar pela cabeleireira para renovar a tinta e fazer a ondulação.
Obrigaram-me a acompanhá- la, com a desculpa de que não poderia ficar sozinho em casa.
Assim que entrou e tratou da ficha no balcão, sentou-se numa cadeira entre 3 senhoras da “sua mocidade” e eu percebi que tinha o lugar reservado.
Recordo-me da conversa e de pensar que não queria nunca chegar a velho.
- Atão, Gracinda, como andas com a dor no bucho?
- Ai, Paquéria, até gano com dores com’ós canitos! Vim cá pedir mais Buscopão para ver se aguento.
- E tu, Cramilda, já te sentas?
- Olha, antes dontem senti-me. Mas o médico custou a fazer o dignóstico. Mandou-me fazer um RX, um taco e chamou-me mentirosa quando me viu sentada na cadêra do sala de espera. Tive que perder a vergonha nas ventas e dizer-lhe que não conseguia era cagar quase há duas semanas!
- Só vistos! Eles pensam c’a gente sabe aqueles nomes estranhos com que falam! Quando me quêxo das dores da cabeça, o dr. pargunta-me sempre se falê-as. Falo com ele, a quem havria mais de falar disso? É que isso de médicos, nunca fiando! – respondeu prontamente a Gracinda.
Nisto chamam a minha avó. Levanta-se com ligeireza e ordena-me:
- Pontinha, fica aqui com as minhas amigas!
Mas eu não vou nisso! Agarro-me à saia dela e não largo.
Entramos no consultório e ela corre para o médico:
- Ai sr. doutor, ai sr, doutor, como está bonito!
E carrega-lhe dois beijos repenicados.
O médico pede-lhe que se sente e comenta:
- Então D. Pulquéria, não tem aparecido à consulta.
E ainda me lembro da desenvoltura da resposta da minha avó:
- Ai Sr. Dr, não tenho podido vir! É que estive tão doente!
(Quase sempre, a realidade supera a ficção. A história baseia-se mesmo em dois episódios reais)