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A 3ª face

Sex | 22.05.20

Desafio dos pássaros #2.9

Tema da semana: Tive uma ideia!

 

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"Amanhã, Pontinha entrará no retiro profissional, sem saber quando tudo terminará."

 

Foi assim que terminou o texto da 8ª semana do Desafio dos Pássaros.

Soou a previsão, numa altura é que ainda não suspeitava que a vida dá voltas e por vezes, encurta o tempo e a vontade de escrever.

A história do Pontinha ficou suspensa.

Mas eu não sou mulher de deixar coisas por terminar, mesmo que as encerre duas ou três reencarnações depois...

 

Pontinha desconfinou agora. A medo, tal como o resto do Mundo, aliás.

 

Depois de dois meses repletos de horas extra, Pontinha mereceu a semana de descanso.

Estava pálido e tinha a sensação de ter o corpo impregnado pelo cheiro do hospital.

As olheiras escuras esbatiam-se nas marcas vermelhas da pele, roçada horas a fio pela máscara cirúrgica.

Quando chegou a casa, depois de tanto tempo sem visitar os pais, o ar de susto da progenitora alarmou-o.

- Precisas de apanhar sol, filho! Pareces um morto-vivo. Ainda te caem os dentes com falta de vitamina D. 

(A mãe sempre adorou mostrar que percebia de Saúde, embora depois se baralhasse com as doenças, sintomas e remédios)

- Tive uma ideia: amanhã vamos caminhar! - Decidiu ela.

 

No dia seguinte, lá saíram bem cedo. Chapada acima até ao castelo, pelo trilho que percorre desde a infância.

Foi narrando à mãe episódios das últimas semanas. 

Os turnos prolongados, as angústias de quem chegava com dificuldades respiratórias, a  pressão dos familiares para saberem notícias dos doentes. Os pesadelos que ainda tem pela incapacidade de salvar todos. E a serenidade de quem cumpriu a missão de cuidar mas de ser, também,o último confidente dos moribundos.

Distraída, a mãe tropeçou numa pedra e quase caiu.

E Pontinha lembrou-se da D. Dolores.

Manteve-se lúcida até ao fim, mesmo com mais de 85 anos.

Pediu para falar. Calara segredos e não queria partir sem soltar o que amarrara a vida inteira.

Pontinha esteve lá, apenas a ouvir, mesmo quando a voz já era apenas um murmúrio.

E guardará para sempre as últimas palavras da velhinha:

 

          As piores pedras não são as que encontras no caminho.

São as que andam escondidas nos bolsos de quem caminha ao teu lado.