Desafio dos Pássaros #8
Tema da semana: Escreve uma carta para a criança que foste
A casa dos padrinhos já foi a minha.
Pertence à família há gerações e cresci lá até que, sob chantagens e ameaças, convenci os meus avós a mudarmo-nos para Lisboa.
Hoje, a madrinha pediu-me para ir ao sótão procurar frascos de vidro para a compota de abóbora, que os CTT não entregaram a encomenda a tempo.
Num canto, coberta de pó, encontrei a arca que costumava estar no meu quarto e onde guardava os brinquedos e as relíquias.
Abri-a e um turbilhão de memórias rodopiou e ganhou vida.
Por lá, encontrei o meu antigo diário e abri-o ao calhas:
Querido diário
Estou muito triste e ninguém me compreende.
Viver aqui, no meio do nada, sempre a ver as mesmas pessoas, está a matar-me.
Hoje, o avô ralhou-me, quando me descobriu no seu quarto a usar as joias da avó. Disse-me que valiam muito dinheiro e poderias parti-las ou perdê-las.
Eu só queria fingir que vivia numa casa grande, numa família rica, como aquelas das novelas que vejo à noite.
Decidi desaparecer para assustá-lo e escondi-me na casa do fumeiro, entre as enormes talhas de azeite.
Entre soluços, acabei por adormecer e abri os olhos já era quase noite.
Por esta altura, o meu avô já deveria estar desesperado. Benfeita!
Iria ficar ali toda a noite (…)
Como me recordo desse dia!
Retirei a caneta que pertencia ao diário e resolvi escrever uma carta à criança que fui, como resposta a este episódio.
“Cara miúda,
Se te disser o quão errada estavas, não acredites.
Foi preciso sair do Alentejo e viver o sonho, para aprender que nem todas as nuvens são de algodão. Por vezes, desfazem-se em água e desaparecem…
Viver em Lisboa não é assim tão bom.
O horizonte do mundo não se perde de vista como numa seara de trigo e torna-se muito mais pequenino. E nunca tens tempo para ver o por do sol alaranjado, espelhado na água do rio.
No dia em que te escondeste, aprendi uma grande lição.
Ficaste lá só mais alguns minutos. Depois, o cheiro a pão quente acabado de sair do forno de lenha, hipnotizou-te e correste para a avó, a pedir uma tiborna.
Na azáfama do dia, ninguém notou a tua falta.
E descobri que, na vida, mesmo nos momentos maus, há sempre o cheiro de um pão quente a sair do forno, que chama por nós.
Só temos que saber inspirar.
(continua...)
Tiborna: fatia de pão quente regada com azeite e polvilhada com açúcar e canela
Foto: Euzinha, p'raí com 3 anos