Madalouca (escrita criativa)
Madalouca.
Chama-se Madalena mas todos lhe chamam Madalouca. Até nem responde quando a tratam pelo verdadeiro nome.
Aqui, onde já vive há 3 meses - ou três anos, saber lá - também acode pela alcunha.
Com a diferença que a chamam com carinho e não com aquele tom de soberba, de quem se julga normal neste mundo.
Madalouca sempre foi irritadiça. A mãe dizia que tinha apanhado a Lua. Por qualquer contrariedade, tinha fúrias e ataques e quase se ia no choro.
Só se controlava e se escondia de si mesma quando o padrinho, homem abastado, a levava a passear e, com desculpa de brincadeiras, a despia e lhe mexia por fora e por dentro. Os rebuçados que lhe oferecia a seguir não lhe adoçavam o terror e as bonecas que lhe trazia, essas, acabavam cortas à tesourada ou furadas com a faca do pão.
E ninguém ouvia os seus gritos mudos, ninguém lhe perguntava o que ela não podia contar.
Foi por volta dos 12 anos que tentou matar-se pela primeira vez.
Cortou um pulso mas o pai descobriu a tempo e quando voltaram do hospital ainda levou com o cinto no lombo.
Talvez por isso, depressa casou.
Com o homem que, de tanto a amar, lhe enfiava os ciúmes pela cara adentro, ainda na altura do namoro.
Mas ela compreendia melhor do que ninguém o que são nervos e fúrias e desculpava-o. E como não era mulher de se ficar atrás, jogava-se a ele pelas mesmas razões.
Porém, as forças foram-se consumindo e o corpo desistiu. Tentou matar-se outra vez. E outra. E outra…
Uma delas quando descobriu que estava grávida.
Aquele filho foi fruto da mais reles violência, quando o marido, perante a sua recusa, a amarrou à cama e lhe fez o que lhe deu na gana, até adormecer.
Não sabe porque pensa nisto agora. Não é hábito revisitar o passado.
Só a ideia do suicídio a visita todos os dias. Todas as horas. Desde sempre.
Há-de matar-se. Talvez hoje. Talvez amanhã.
Da próxima será de vez.
Já se matou 32 vezes. E a morte desviou-se.
Mas da próxima, será como a idade de Cristo quando morreu e Jesus ajuda-la-á a ter paz.
Que tudo o que quer é matar aquele desassossego que nunca conseguiu vomitar.
Às tentativas de suicídio seguiam-se períodos de internamento psiquiátrico. Mais ou menos longos.
Mas no país inteiro, não se encontrou uma unidade de saúde mental que assumisse a responsabilidade de a acolher e a proteger dos seus fantasmas.
A família muito menos.
E a Segurança Social acabou por colocá-la num lar de idosos. Ela, com 58 anos!
E ali estava há 3 meses. Ou três anos, saber lá.
O certo é que, no próprio dia em que chegou, lhe pediram ajuda para alimentar os acamados.
E depois para os levar a passear, na cadeira de rodas, pelo jardim.
E depois descobriram que ela cantava fado quase tão bem como a Amália e todos lhe pediam para cantar. De quarto em quarto.
Mas havia de se matar! Talvez hoje.
Agora não, que já ouve a Ti Deolinda a chamar, na cadeira de rodas, para o passeio matinal.
É Primavera e o ar está tão calmo.
Estranho… Consegue sentir a tranquilidade da Primavera dentro de si!
- A vida é engraçada! – pensa.
É aqui, ao pé da desgraça e da morte dos outros, que se sente serena pela primeira vez!
Ainda assim, é bom ajudá-los.
Sorri.
Há-de matar-se a 33ª vez.
Mas agora não tem tempo.
Que a Ti Deolinda não pára de a chamar….
(Se gostaram da história, visitem o menu "escrita criativa".
Estão lá arrumados todos os contos que me têm saído da cabeça, directamente para o blog...sem acordo ortográfico.)