Mesmo velhinha...uma mãe sabe
Olinda está acordada há mais de meia hora.
Chamou por duas vezes pela ajudante de lar que, a essa hora, já a deveria ter ajudado a vestir.
Os seus 93 anos pesam-lhe os movimentos e ela não tem tempo.
É hora do pequeno-almoço e, na outra ala do lar, o seu filho deve estar preocupado com a demora.
Ali é a sua casa há mais de 8 anos.
Dos dois.
Quando o filho, aos 60 anos, teve o AVC que lhe matou o lado direito do corpo e o emudeceu, foi ela que passou a prestar-lhe todos os cuidados.
Divorciado e com os dois filhos emigrados, não restava mais ninguém.
E uma mãe sabe.
Sabe cuidar do seu menino com 6 dias, com 6 anos ou com 60.
Não há qualquer diferença.
Ainda assim, o corpo envelhece mais rapidamente do que o amor e Olinda teve de se render.
Mesmo com o apoio domiciliário diário, tornou-se incapaz de tratar do seu menino, agora com 80 quilos e sem andar.
O filho foi para o lar.
Olinda ficou em casa mas por pouco tempo.
O desgosto da separação carregou-lhe no corpo mais do que a idade e, com a ajuda dos netos – que isto de ter duas pessoas da mesma família num lar é luxo demais para uma reforma comum – também foi para lá viver.
Para tomar conta do menino.
Mesmo quando as artroses dos joelhos lhe dificultaram a marcha, passou a deslocar-se na cadeira de rodas e lá ia.
Dava-lhe as refeições, assoava-o, limpava-lhe a baba. Mudava-lhe o canal de televisão quando ele não gostava do programa.
Uma mãe sabe.
Mesmo quando o filho não fala.
Assim foi desde que ele nasceu. Não iria ser diferente agora.
Olinda continua deitada, com os sentidos em alerta, à espera do som abafado das crocs da funcionária.
Ouve um veículo estacionar no exterior.
Conhece demasiado bem o som daquele motor. Afinal, já cá vive há bastante tempo.
Então, percebe que vai ser uma manhã demorada.
E, por isso, levanta-se com a ajuda do andarilho, vai à casa-de-banho, veste-se e penteia-se.
Demoradamente.
Afinal, hoje tem tempo.
Escova os cabelos castanhos, pintados há menos de duas semanas - que nunca gostou de andar a mostrar os brancos - e prende-os atrás da orelha.
Porque não colocar um pouco de blush e de baton? Afinal, hoje tem tempo e já sabe que o dia vai ser diferente. E quer ir bonita.
Volta a deitar-se. Cansada.
Mas está pronta.
Olha para a fotografia da mesa de cabeceira.
A foto preferida do seu menino, com 4 anos, junto ao baloiço do jardim.
Volta a ouvir o motor do veículo. Afinal não se demorara por ali. As luzes azuis ferem-lhe a vista.
Fecha os olhos.
Agora sim. Ao longe, consegue ouvir o sussurrar das crocs da funcionária. Não vem só, ouve o som de uns tacões.
Mas ao quarto, alguém chegara primeiro.
Estende a mão.
E sente aqueles dedinhos minúsculos, quentes e macios que puxam por ela.
Vai.
Subitamente, acha-se mais leve.
Acolá, vê o baloiço...
Uma mãe sabe.
Quando a directora técnica e a ajudante de lar entraram no quarto para lhe dar a notícia de que o filho falecera durante a noite, ela ainda sorria...
(O aumento da esperança de vida tem transformado progenitores idosos em cuidadores dos próprios filhos incapacitados e, muitas vezes, também eles já idosos.
Frequentemente é a única resposta que existe. Porque a sociedade ainda não se preparou para esta nova realidade)
O texto faz parte de um conjunto de reflexões sobre o Envelhecimento.
Posts já publicados:
- E tu, o que queres ser quando fores velho?