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A 3ª face

Ter | 02.10.18

Mesmo velhinha...uma mãe sabe

 

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Olinda está acordada há mais de meia hora.

Chamou por duas vezes pela ajudante de lar que, a essa hora, já a deveria ter ajudado a vestir.

Os seus 93 anos pesam-lhe os movimentos e ela não tem tempo.

É hora do pequeno-almoço e, na outra ala do lar, o seu filho deve estar preocupado com a demora.

Ali é a sua casa há mais de 8 anos.

Dos dois.

Quando o filho, aos 60 anos, teve o AVC que lhe matou o lado direito do corpo e o emudeceu, foi ela que passou a prestar-lhe todos os cuidados.

Divorciado e com os dois filhos emigrados, não restava mais ninguém.

E uma mãe sabe.

Sabe cuidar do seu menino com 6 dias, com 6 anos ou com 60.

Não há qualquer diferença.

Ainda assim, o corpo envelhece mais rapidamente do que o amor e Olinda teve de se render.

Mesmo com o apoio domiciliário diário, tornou-se incapaz de tratar do seu menino, agora com 80 quilos e sem andar.

O filho foi para o lar.

Olinda ficou em casa mas por pouco tempo.

O desgosto da separação carregou-lhe no corpo mais do que a idade e, com a ajuda dos netos – que isto de ter duas pessoas da mesma família num lar é luxo demais para uma reforma comum – também foi para lá viver.

Para tomar conta do menino.

Mesmo quando as artroses dos joelhos lhe dificultaram a marcha, passou a deslocar-se na cadeira de rodas e lá ia.

Dava-lhe as refeições, assoava-o, limpava-lhe a baba. Mudava-lhe o canal de televisão quando ele não gostava do programa.

Uma mãe sabe.

Mesmo quando o filho não fala.

Assim foi desde que ele nasceu. Não iria ser diferente agora.

 

Olinda continua deitada, com os sentidos em alerta, à espera do som abafado das crocs da funcionária.

Ouve um veículo estacionar no exterior.

Conhece demasiado bem o som daquele motor. Afinal, já cá vive há bastante tempo.

Então, percebe que vai ser uma manhã demorada.

E, por isso, levanta-se com a ajuda do andarilho, vai à casa-de-banho, veste-se e penteia-se.

Demoradamente.

Afinal, hoje tem tempo.

Escova os cabelos castanhos, pintados há menos de duas semanas - que nunca gostou de andar a mostrar os brancos - e prende-os atrás da orelha.

Porque não colocar um pouco de blush e de baton? Afinal, hoje tem tempo e já sabe que o dia vai ser diferente. E quer ir bonita.

Volta a deitar-se. Cansada.

Mas está pronta.

Olha para a fotografia da mesa de cabeceira.

A foto preferida do seu menino, com 4 anos, junto ao baloiço do jardim.

Volta a ouvir o motor do veículo. Afinal não se demorara por ali. As luzes azuis ferem-lhe a vista.

Fecha os olhos.

Agora sim. Ao longe, consegue ouvir o sussurrar das crocs da funcionária. Não vem só,  ouve o som de uns tacões.

Mas ao quarto, alguém chegara primeiro.

Estende a mão.

E sente aqueles dedinhos minúsculos, quentes e macios que puxam por ela.

Vai.

Subitamente, acha-se mais leve.

Acolá, vê o baloiço...

Uma mãe sabe.

 

Quando a directora técnica e a ajudante de lar entraram no quarto para lhe dar a notícia de que o filho falecera durante a noite, ela ainda sorria...

 

(O aumento da esperança de vida tem transformado progenitores idosos em cuidadores dos próprios filhos incapacitados e, muitas vezes, também eles já idosos.

Frequentemente é a única resposta que existe. Porque a sociedade ainda não se preparou para esta nova realidade)

 

O texto faz parte de um conjunto de reflexões sobre o Envelhecimento.

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E tu, o que queres ser quando fores velho?

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