Morte, espera aí que eu já vou (escrita criativa)
Os últimos meses não foram fáceis.
Estes dias, em que já nem comia e apenas se aguentava com as doses de morfina, haviam-se tornado um suplício.
Bia sentia-se permanentemente atordoada e por vezes, tinha dificuldade em falar e perceber o que lhe diziam. Sabia que tinha delírios e chamava pelo neto. Se não ouvisse os comentários das enfermeiras, julgaria que eram apenas sonhos. Mas não!
Há muito que ELA estava no quarto. Queria levá-la, sabe-se lá para onde mas Bia não deixava. Haveria de continuar a lutar. Não iria assim, sem se despedir do seu principezinho, de quem cuidara desde que nascera até a doença se descobrir.
- Espera aí que eu já vou - murmurava horas a fio.
Não tinha medo da morte. Já nada temia desde que o marido lhe entrara no quarto para fazer companhia. Com o mesmo sorriso com que anos atrás, se despedira.
Foi a única coisa que guardou do dia em que o companheiro de toda a vida tombou na sala, com uma dor no peito. Aguentou-se até os bombeiros lhe entrarem pela casa e, com um largo e tranquilo sorriso, olhou para eles e partiu.
Agora, talvez devido às doses de droga, via o marido ao canto do quarto. Ao outro canto, ELA lá estava, impaciente!
- Espera aí mais um bocadinho que já vou!
As enfermeiras perceberam a sua luta por mais um dia - ou um par de horas, quiçá- e pediram ao filho para trazer o menino. Afinal, tinha apenas 4 anos e não iria perceber muito bem o que se estava a passar. A experiência dizia-lhes que Bia, no meio daquele sofrimento, só se iria dar por vencida depois de se despedir do neto.
A família veio e ela pode sentir os lábios quentes e doces do seu menino no rosto escanzelado.
Sorveu ainda as lágrimas salgadas dos filhos ou dos seus próprios olhos - que isso não discerniu - e lembrou-se deles com as mãos pequeninas agarradas às suas.
Tivera uma boa vida, cheia de amor, apesar de tudo!
Já não conseguia falar mas as memórias enchiam-lhe todo o coração e escorriam-lhe pelos olhos.
O marido, ao canto, sorria-lhe.
Estavam lá todos: a família, cheia de vida e a morte, acompanhada pelo marido.
Inspirou duas vezes. Não que o ar lhe chegasse já aos pulmões.
Mas afinal, respirar é o que nos anuncia à vida e à morte e foi a maneira que arranjou para agradecer às duas.
À vida, pela família, amigos e bons momentos que lhe concedeu.
À morte, por se ter deixado esperar até se despedir de todos.
E ELA, finalmente, pode aproximar-se para a levar.
No meio do pranto da família, ainda conseguiu ouvir o neto perguntar:
- Porque choram tanto se a avó está a sorrir?
- É o sorriso dos que morrem em paz - ainda quis dizer.
Mas, por essa altura, já estava demasiado longe. Rumo ao desconhecido.
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Há uns dias atrás, ouvi um novo relato de uma pessoa que só se desprendeu da vida depois da despedida dos filhos.
Quantas histórias destas guardo, nem sei: de doentes que só descansam depois de verem os netos. Ou de voltarema a casa. Ou de se reconciliarem com alguém com quem estavam zangados…
Um profissional de emergência, há uns tempos, confessou que a sua maior frustração – e que é frequente – é ser chamado para socorrer alguém e quando chega com todo o equipamento para o salvar, vê-lo dar um sorriso e morrer.
De uma forma ou de outra, parece que conseguimos fazer a morte esperar até ao momento em que sentimos paz.
Alguém conhece histórias assim?