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A 3ª face

Qua | 27.01.21

Sara arco-íris, a colecionadora de cores

Desafio dos lápis de cor, #2 Castanho

 

guarda chuva.jpg

 

12 de Fevereiro, 18.00 h

- Porra! Estou farta disto!

Sara esperava que o elevador chegasse ao 10º piso do hotel para a embalar até ao chão.

Desde as nove da manhã que estava na sessão fotográfica - raio dos produtores que nunca se satisfazem com os milhares de fotos que lhe roubam por minuto -, comera uma mísera salada e uma lata de bebida energética, cujo efeito já estava a passar.

Desde meados de Janeiro, quando regressou ao trabalho, o ritmo era este.

 

O elevador chegou mas já um casal muito enamorado aguardava a boleia. Pelas trocas de olhares e o brilho que lhes ofuscava os dedos anelares, de certeza que estavam em lua-de-mel, numa das suites do último piso.

Desceram.

Eles aos beijinhos, Sara encolhida, a ignorá-los e a voz interior a querer romper os lábios para soltar um:

- Também quero! Também quero que me beijem, que me abracem, que me sirvam de barco neste mar revolto, deixa-me ser tu, mulher! Deixa-me enfiar na tua pele e...

 

...E lembrou-se que estava quase a meio do mês e ainda não tinha o cromo castanho para a sua colecção.

- Não faz mal, ainda há tempo, estou exausta e um homem de castanho neste dia de chuva, só se vier coberto de lama! Chuva rima com cinzento, com bege gabardinoso, com chapéus-de-chuva pretos.

 

E o carro? Porque o deixara no estacionamento público se o hotel tinha garagem? Agora que nem uma sombrinha de bolso trazia?

Parou de rompante à porta, a temer desafiar a chuva.

Tão de rompante que alguma coisa pontiaguda a feriu nas costas.

- Perdão, menina! Não percebi que tinha parado. Magoei-a?

Sara reparou então que a pancada viera da ponta de madeira de um guarda-chuva com padrão tigresa… castanho.

-Mas que raio faz um homem destes com um chapéu tigresa? – pensou, enquanto mil estrelinhas se acenderam e a página da caderneta se escancarou. – Queres um cromo castanho? Ei-lo, atrás de ti!

- A culpa foi minha, senhor! Parei com receio da chuva. O carro está no estacionamento e não tenho nada que me proteja deste dilúvio…não esperava ficar molhada hoje, sabe? Mas há sempre surpresas à nossa espera, não é?

- Não é, Homem tigresa? Ofereço-te malícia nas palavras e dois olhos sedutores, abro o sorriso húmido e o botão do casaco, mostrando o decote arrendado da blusa com que me fotografaram o dia inteiro e tu nem dilatas um micro-milímetro das pupilas? Vais ser difícil de amansar, fera!

- Por acaso também lá tenho o carro, quer uma boleia?

- Finalmente um sorriso acanhado e um convite… o cromo está quase colado na caderneta.

 

Sara agarrou-lhe a manga da gabardina, depois deu-lhe o braço e aconchegou-se com a desculpa dos pingos de chuva (cada vez mais fracos), andando devagar, por causa dos saltos altos.

Nos lancis, puxava-lhe o cotovelo para o roçar no seu seio mas parece que as feras, especialmente os tigres, são de uma frieza inabalável e Sara não viu sinal de o domar.

- Tem um guarda-chuva muito original! Que mais coisas originais tem para me mostrar?

O homem tigresa decifrou finalmente as suas intenções mas recompôs-se num ápice, acelerando o passo.

- Este cromo não é para a minha caderneta, pronto! Afinal colecciono homens, não feras frívolas e sem fraquezas… mais oportunidades virão, falta muito para o fim-do-mês e…

- O meu carro está neste piso. – O homem tigresa cortou-lhe a ladainha muda, enquanto fechava o guarda-chuva, já dentro do parque subterrâneo.

- Coincidência, o meu também!

Caminharam ainda lado a lado, o olhar dele sombrio, o dela cansado pelo fracasso, o ambiente fosco e húmido do estacionamento.

- Pronto, o meu carro está aqui, menina. Foi um prazer.

O homem tigresa destrancou o carro com o comando. Sara, inesperadamente, abriu a porta traseira, empurrou-o para o banco corrido, fechou a porta e só a abriu muito tempo depois, quando os vidros embaciados ameaçavam implodir com o calor e a escassez de oxigénio.

- Tenho de ir. - Disse Sara.

- Espera! Leva o guarda-chuva. É uma oferta.

Sara quis dizer que não mas deixou-se convencer por aqueles olhos de tigre saciado, agora hipnotizantes.

 

O que nunca soube é que o guarda-chuva tinha sido o único objecto pessoal que a mulher do homem tigresa  deixara lá em casa esquecido, quando o abandonou sem uma palavra sequer. Ele, que a amava mais do que a própria vida!

 O guarda-chuva também nunca abriu o segredo de que estava destinado a planar, nesse fim de tarde, agarrado ao dono, ponte abaixo, até embater de chapão nas águas frias do Tejo.

 

Nesse dia, nesse buraco esventrado à terra para arrumar carros, o homem tigresa perdeu o único objecto que o ligava à ex-mulher.

Mas ganhou de volta o amor-próprio e a vontade de viver.

Todavia, Sara Arco-Íris, a coleccionadora de cores, nunca disso iria saber!

 

Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio, lançado  no blogue da Fátima.

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